MEDIDA PROVISÓRIA

O filme, que tem 101 minutos de duração, ficou pronto ainda em 2019. Mas só agora, em meados de abril de 2022, após quatro adiamentos das estreias programadas, conseguiu ser lançado. O atraso se deveu a vários fatores, a maioria dos entraves colocados no caminho dos produtores pelo Governo Federal. O que não impediu que fosse alcançado o expressivo número de 237 mil espectadores nas duas primeiras semanas em que ocupou algumas salas de cinema, em nosso país. O número está longe daqueles que são atingidos por muitas das superproduções hollywoodianas, mas é bastante razoável. Superou outro lançamento nacional, também recente e perseguido pelo autoritarismo encastelado em Brasília: Marighella, em tempo igual no ano passado, conseguira 216 mil pagantes. Portanto, perdeu a posição para Medida Provisória por um total de 21 mil bilhetes.

Os dois filmes têm em comum a crítica a pecados históricos do nosso país, além de contarem com Seu Jorge no elenco. Se no primeiro deles Wagner Moura mostrou todo o seu talento como diretor, no segundo foi a vez de Lázaro Ramos estrear nessa função. Outro traço que pode ser por ambos dividido é que seus detratores, mesmo sem ser essa a sua vontade, terminaram por impulsionar o interesse das pessoas. No caso de Medida Provisória, o filme não parte de um personagem real, de uma biografia. É ficção pura, uma distopia que de tão absurda ainda poderia ser pensada por Bolsonaro e seus seguidores. Esses, na vida real, são como os que exercem o poder na história e também detestam negros. Por isso, usando como pretexto uma reparação ao que os escravocratas fizeram no passado, determinam que os descendentes dos trazidos à força da África sejam para lá devolvidos.

Essa irônica forma de encarar o racismo estrutural de nosso país fez com que Sérgio Camargo, que presidia a Fundação Palmares, juntamente com Mário Frias, ex-secretário da Cultura, fizessem de tudo para deter a realização do filme. O primeiro pediu publicamente um boicote, que as pessoas não fossem ver as exibições, sob a alegação de que nele o governo era acusado de racista. O rapaz, além de nunca ter entendido exatamente o que é o racismo, sequer sabia que o trabalho começou a ser concebido em 2012. Ou seja, seis anos antes do “mito” ter chegado à presidência. E o embrião ainda mais um ano antes, quando o texto da peça teatral Namíbia, não! foi apresentada pelo diretor e dramaturgo Aldri Anunciação para Lázaro Ramos. Esse se interessou de imediato pela força que poderia ter um roteiro cinematográfico que fosse baseado nela, e foi isso que fez.

As filmagens foram conduzidas com dificuldades. E, depois de pronto, o filme ficou um ano ainda aguardando que a Ancine desse resposta a um pedido de investimento, que seria utilizado para a distribuição. A resposta era sempre a mesma: está em análise. Mesmo assim, Medida Provisória começou a ser visto em festivais, com uma recepção extremamente satisfatória da crítica especializada. No Indie Memphis Film Festival, dos EUA, coube ao longa o troféu de melhor roteiro. No mesmo país recebeu os prêmios de melhor direção e de melhor ator, essa para Alfred Enoch, no Pan African Film, de Los Angeles. Os mesmos dois troféus também lhe foram concedidos no Festival de Huelva, na Espanha. Em Lisboa, Portugal, entregaram para Lázaro Ramos o prêmio de melhor realizador, no Festin Festival. Enquanto tudo isso acontecia, aqui no Brasil não tinham tempo sequer para autorizar o lançamento da obra. O que só aconteceu depois que houve divulgação na imprensa dos empecilhos burocráticos propositalmente criados.

O trio central da trama é composto pelo advogado Antônio, vivido pelo britânico filho de mãe brasileira, Alfred Enoch – trabalhou em Harry Potter e em Lições de Um Crime –; sua esposa, a médica Capitu (Taís Araújo); e pelo jornalista André (Seu Jorge). No total, são 77 os atores que trabalham, sendo 70 deles negros. Duas atrizes brancas vivem também papéis destacados para o desenrolar da história. São elas Adriana Esteves, que é uma assistente social que trabalha para o inacreditável Ministério da Devolução; e Renata Sorrah, uma moradora do mesmo prédio onde vivem Antônio, Capitu e André. Ambas são a exata personificação do racismo, também disseminado entre os demais personagens brancos do filme e as forças de segurança. A função desse grupo repressor ganha força justo após o decreto presidencial ter sido publicado, uma vez que isso os autoriza a perseguir a população negra que desejam ver banida.

Na trilha sonora estão nomes como Rincon Sapiência, Baco Exu do Blues, Elza Soares e Cartola. Quanto ao seu gênero, o filme passeia entre o drama e o suspense, conseguindo ter ainda doses de humor. E, mesmo sendo seu primeiro trabalho, Lázaro Ramos conseguiu fugir de clichês que poderiam ter de alguma forma aparecido. Entre as providências que tomou para evitar isso foi colocar as figuras centrais da história como integrantes da classe média. A tensão central se estabelece pelo fato de o decreto determinar a “extradição”, sem autorizar que as casas possam ser invadidas para a prisão das pessoas. Então, Antônio e André ficam entrincheirados no seu prédio, enquanto Capitu estabelece rota de fuga, até ser resgatada e recolhida no Afrobunker. Esse é o nome dado a uma espécie de quilombo que é criado na quadra abandonada de uma escola de samba, tornada sem uso depois que o carnaval, considerado também uma manifestação negra e não bem-vinda, termina sendo proibido. Na vida real, se pudessem – ou ainda vierem a poder – iriam proibir é que se vá ao cinema. Aproveite para ver enquanto isso é possível, porque vale a pena.

1º.05.2022

Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge

Os bônus hoje são múltiplos. Começo com o trailer do filme. Depois, vamos para sua trilha sonora, com duas das músicas que a compõem. O áudio de Preciso Me Encontrar (Cartola) e um clipe com O Que Se Cala (Elza Soares). Tudo para que você entre no clima e dê um jeito de ir ao cinema.

Trailer de Medida Provisória
Preciso Me Encontrar – Cartola
O Que Se Cala – Elza Soares

DIA DAS MÃES

Canecas com frases alusivas à data. Um presente simples, mas carregado de afeto. Exatamente como todas as mães adoram.

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DELICADEZA TRANSGRESSORA

Ela nasceu capixaba e circunstancialmente se tornou carioca, muito carioca, uma vez que foi para o Rio de Janeiro ainda com um ano de idade. Seu corpo delicado parecia não ter conexão com a coragem, que fazia jus ao seu sobrenome. Falo de Nara Leão, tida como Musa da Bossa Nova e que, na realidade, era muito mais do que isso. Hoje ela estaria completando 80 anos, não tivesse falecido tão precocemente, aos 47, vitimada por um câncer. Mas, antes de contar um pouco mais da sua história, dou um exemplo da audácia que citei acima. Em plena ditadura militar, quando um general a ameaçou de prisão, dizendo que ela tinha que parar “com essa história de protesto, de carcará e de não mudar de opinião”, ela respondeu na lata: “esse Exército não serve para nada”. Tudo registrado, pois fez isso em uma entrevista. Pego de surpresa com a reação dela, o fardado nada fez.

Nara tinha berço e isso talvez também assustasse a autoridade. Morava de frente para o mar, em Copacabana, e sempre é muito mais fácil intimidar o povo da periferia, com sua população pobre e sem voz. Mas a cantora, mesmo tendo essa “proteção social” evidente, nunca deixou de denunciar a miséria nem a opressão dos poderosos. No apartamento dos seus pais era comum que a nata da Bossa Nova se reunisse. Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Johnny Alf, Edu Lobo, Sérgio Mendes, João Donato e outros eram habitués. Naquele endereço muita coisa boa foi composta.

Fruto daquele meio, admiradora de João Gilberto e Tom Jobim, quando lança seu primeiro álbum mescla esses parceiros da Bossa Nova com sambistas. Para surpresa de muitos, nele aparecem Nelson Cavaquinho, Cartola, Zé Keti e Elton Medeiros. E no segundo, um verdadeiro clássico (Opinião de Nara), ela abandona qualquer possibilidade de ser chamada de ingênua, pelo preconceito reinante, assumindo de vez as questões sociais. Eclética, porém muito simples, de cabelo curto, sem qualquer exagero visual nas roupas e nos acessórios e geralmente abraçada ao seu violão. Essa era Nara em casa ou na rua.

De sua aproximação com Chico Buarque veio a vitória no Festival de Música Popular da Record, em 1966. A canção A Banda, que ela interpretou, terminou empatada no primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, defendida por Jair Rodrigues. Namorou com o Tropicalismo; gravou compositores nordestinos; se debruçou sobre o jazz; e até mesmo Roberto e Erasmo Carlos fizeram parte do seu repertório, para desespero de seus companheiros de primeira hora, na Bossa Nova. Gravou também Fagner, Dominguinhos, Sidnei Miller, Sueli Costa e Jards Macalé, entre tantos outros nomes, sendo conhecidos ou novatos. 

Sem dizer-se feminista, ela sempre contribuiu muito na luta das mulheres. Ainda em 1959, quando Norma Bengell foi proibida pelos padres de cantar num show que estava marcado para a PUC-RJ, ela liderou reação e levou o evento para a UFRJ, iniciando de certa forma o clássico “mexeu com uma, mexeu com todas”. E quando foi ameaçada de prisão, como contei antes, mereceu um poema de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade. Em 1º de abril de 1968, data em que o golpe militar completava quatro anos, logo após o estudante Édson Luís ter sido brutalmente assassinado, publicou o texto “É preciso não cantar”, na coluna que Nelson Mota mantinha no jornal Última Hora.

Um documentário em cinco capítulos sobre a vida dela está disponível no Globoplay. “O Canto Livre de Nara Leão” tem direção de Renato Terra e mistura a biografia da cantora com um pouco de cultura popular, história do Brasil e resistência feminina. A edição é impecável, trazendo imagens e áudios de arquivo, depoimentos e entrevistas. Nos permite conhecer muito mais da menina culta, que foi casada com dois cineastas, o moçambicano Ruy Guerra e o brasileiro Cacá Diegues –, tendo com o segundo um casal de filhos, Isabel e Francisco. Terra dedica cada episódio a uma das muitas facetas e controvérsias de Nara. Mas, acima de tudo, enriquece a visão que se tinha dela e com certeza irá contribuir para o surgimento de novos e tardios fãs.

19.01.2022

Nara Leão

No bônus musical de hoje, Nara Leão com Chega de Saudade, de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim.

Clicando na imagem acima você pode adquirir Manhã de Liberdade, álbum que Nara Leão lançou em 1966. São doze canções, começando com a premiada A Banda. Outras faixas em destaque são Funeral de Um Lavrador, de João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque, e Faz Escuro Mas eu Canto, de Mansueto Menezes e do poeta Thiago de Mello, que faleceu essa semana. Todos os registros são de imensa qualidade.

Outra possibilidade interessante é o livro de Ruy Castro, Chega de Saudade. Nele há uma cuidadosa reconstituição da Bossa Nova e da vida boêmia e cultural carioca da época. O que inclui Nara Leão, é lógico. Trata-se de uma narrativa que se lê como um romance baseado em fatos reais, repleta de paixões e traições, amores e desamores, lances cômicos e trágicos. Tem minha recomendação. Assim como no álbum, basta clicar na imagem acima. Se você fizer compras através de um desses links, o blog será comissionado.