Entre outubro de 2018 e janeiro de 2019 na cidade de Haia, na Holanda, uma missa foi ministrada sem interrupção, 24 horas por dia, todos os dias desse período. Sacerdotes se revezam, voluntariamente, para manter a maratona. E não estavam fazendo isso com a intenção de ingressarem no Livro dos Recordes, o mundialmente conhecido Guiness Book. A motivação era muito mais nobre e foi surpreendente que tenham conseguido manter toda essa disposição, por tão longo tempo.

A vigília se deu porque uma família de armênios estava refugiada dentro da igreja, com a polícia aguardando por sua saída, do lado de fora. Eles seriam deportados, logo após detidos. Entretanto, uma lei holandesa proíbe que se interrompa serviços religiosos e também não permite que, enquanto eles aconteçam, ocorram buscas no interior dos templos. Além dos ministrantes, milhares de fiéis contribuíram com sua presença, em escalas. Depois de três meses de resistência, houve um acordo mediado por vários partidos políticos com o governo central. E o casal e seus três filhos tiveram permissão para permanecer no país. Mais do que isso, foi anunciada a revisão de centenas de pedidos de asilos antes negados e que, naquela ocasião, beneficiaram muitas outras crianças e adultos.

Depois da última missa – ou seria a mesma, ainda a primeira? – ocorreu uma grande festa. Era a vitória da empatia e da humanidade. O homem estava jurado de morte em seu país de origem, devido a atividades políticas, tendo por isso fugido com a família para a Holanda. Outra situação que se criara foi a de filhos de refugiados, nascidos em território holandês enquanto seus pais seguiam esperando a resposta para pedidos de asilo. Cerca de 700 estavam nesta situação estranha: não eram cidadãos e cidadãs de lugar algum, de nenhum país, pois ainda sem o reconhecimento para permanecer, também não conheciam a terra natal de seus pais. Muitas dessas crianças, sequer falando o idioma local, simplesmente era como se não existissem. Grupos de direitos humanos e a sociedade civil organizada conseguiram, logo após o “incidente” na igreja e a repercussão que ele causou, resolver a situação de 90% delas.

O Estatuto dos Refugiados foi formalmente adotado pela Organização das Nações Unidas, em 28 de julho de 1951. Surgiu da necessidade de ser resolvida a situação do grande número de pessoas refugiadas na Europa após o término da Segunda Guerra Mundial. É um documento que define quem vem a ser um deles e esclarece quais são seus direitos e deveres, assim como aqueles relativos aos países que os acolhem. Seu fundamento legal permitiu que, desde então, milhões de pessoas deslocadas tivessem uma forma de recomeçar suas vidas. Essas pessoas fogem em razão de temores causados por perseguição devida à raça, religião, nacionalidade, opinião política ou associação a algum grupo social não aceito em seu país. Cruzam fronteiras, portanto, devido a algum tipo de preconceito ou ódio.

O Brasil vinha, até recentemente, desempenhando um papel histórico de relativa liderança nessa área. Foi o primeiro do Cone Sul a ratificar essa convenção, de 1951, tendo sido também o país pioneiro da região a sancionar uma lei nacional a respeito do assunto. Fez isso em 1997, com a inclusão do que havia sido estabelecido na Declaração de Cartagena sobre Refugiados, ocorrida em 1984. Também naquele momento foi criado o CONARE – Comitê Nacional para Refugiados. E existem aqui ONGs e instituições que prestam apoio fundamental no acolhimento dessas pessoas. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por exemplo, com outras 11 universidades, integra a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, que presta, gratuitamente, assessoria jurídica, psicológica e social a imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio.

No ano de 2018 nosso país acolheu 11.231 refugiados, dos quais 28% eram mulheres e 72% homens. A maior parte desse grupo era composta por sírios (36%), seguidos de congoleses (15%) e angolanos (9%). Mas existiam 161.057 solicitações em análise, a maior parte de senegaleses, havendo também um grande grupo de haitianos. Depois disso, cresceu muito a disposição do governo federal em priorizar venezuelanos (60,2% do total, em 2020). E, também nos últimos três anos, filtros supostamente ideológicos parecem ter adquirido um peso maior do que o humanitário. O que é lamentável, porque todos nós nos tornaremos melhores apenas quando aprendermos de fato que a dor dos outros pode ser igual ou pior do que a nossa. E que todos, em algum momento da vida, precisamos de apoio, compreensão e acolhimento.

12.12.2021

No bônus musical de hoje temos Diáspora, com os Tribalistas (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte).

8 Comentários

  1. Obrigada por recuperar esta história. Precisamos lembrar que há muito mais que ódio e indiferença. E a música é lindíssima.

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  2. Memória de grande sensibilidade sobre ações humanas e humanitárias! Enternece a dor. E a linda canção nos transporta para o nomadismo dos sentimentos que unem os cidadãos do mundo! Obrigada por mais este presente!

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