Nosso sistema numérico é posicional. Todos nós sabemos disso, mesmo que não saibamos que sabemos. Vamos explicar com calma. Quando se pega um número qualquer, que seja o três nesse exemplo, estando ele sozinho vale exatamente o que sua expressão gráfica representa: três unidades de uma coisa qualquer. Mas, se acrescentamos outro número ao seu lado direito, um seis que seja, naquele mesmo instante o três passa a valer trinta. Como se a inflação que a gente sente todos os dias no supermercado resolvesse de vez atropelar nosso bolso. Ao trocar de posição, o nosso três aquele deixa de ser unidade e passa a ser dezena, multiplicando por dez o seu valor atribuído. No exemplo dado, com mais seis da unidade que foi acrescida. Ou seja, temos agora o 36 diante de nossos olhos.

O que talvez nem todo mundo saiba é que o zero não é tão antigo quanto os demais números de 1 a 9. E que ele foi criado muito depois, para que se pudesse resolver uma questão que o simples posicionamento não tinha como enfrentar. Voltamos ao 36 que criamos acima. Na antiguidade, se alguém queria escrever 306, apenas afastava um pouco mais o três do seis, deixando um espaço em branco entre ambos. O que causava um problema imenso e nem sempre esclarecia a situação. Foi então que na Babilônia, 300 anos antes de Cristo, sabe-se lá quem teve a ideia de criar um novo símbolo que significaria a presença da ausência. Era uma espécie de “não número”, mas que outra vez multiplicava por dez o que fosse deslocado pela utilização dele. E o três não valia mais nem três nem trinta, sendo agora trezentos. E por que não se poderia usar um dos nove números já existentes para cumprir esse papel? Por que não seria 306 o resultado, mas 316, 326, 336 e assim por diante. O que agora nos parece tão óbvio que até se torna risível, mas não era assim naquele tempo.

Mesmo depois dessa adoção, ainda se passaram mais de 900 anos até que o pobre do zero fosse conceitualmente inserido na matemática. Isso ocorreu na Índia, em 630 d.C., país que já incorporara o necessário conceito abstrato que o zero carrega. Para os indianos, o nada era e continua sendo algo como a eternidade. Na sua filosofia, o universo viera do nada e a volta ao nada seria o objetivo verdadeiro e final de toda a humanidade. Isso explicaria o símbolo circular que foi adotado para representá-lo, que seria na verdade o mesmo do uróboro, aquela serpente que morde a própria cauda. O eterno retorno, o emergir e a espiritualidade.

O que ficou faltando, a partir disso, foi a adoção de “leis” que pudessem permitir e orientar o seu uso nas quatro operações: somar, diminuir, multiplicar e subtrair. Tal providência foi tomada pelo matemático indiano Brahmagupta. Mesmo assim, ainda levaram séculos até que a China e o Oriente Médio incorporassem o zero, de onde então ele seguiu viagem até a Europa. Impressionante é que por lá ele foi duramente combatido e até proibido, em alguns locais e oportunidades. As duas razões para isso foram a economia e a religião. No primeiro caso, a adoção do zero abria caminho para a incorporação de noções de números negativos, o que remetia a empréstimos e dívidas, algo não desejável. E a igreja católica entendia que aceitar o zero seria concordar com a existência de um mundo sem Deus.

Depois de centenas de anos com debates envolvendo ciência, filosofia e religião, foi apenas no Século XV – quase quando o Brasil estava sendo “descoberto” – que o zero foi aceito na família do sistema numérico indo-arábico. Assim, ao invés de nove algarismos, nós passamos a ter dez. Isso promoveu alterações profundas não apenas na matemática, como na física e em outras ciências não necessariamente exatas. Porque o zero nos ensinou a aceitar o distanciamento das necessidades práticas e mundanas, nos remetendo a espaços de total abstração. Ou seja, ao vencer a batalha por sua própria existência, o zero levou a humanidade como um todo a sair vitoriosa.

22.11.2021

No bônus de hoje, a música Pouco Quase Nada Nós, com Nina Ock. A composição é de Alexandre Facchini, que também é multi-instrumentista, produtor e arranjador. 

3 Comentários

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s