UM NÚMERO MUITO ESTRANHO

Eu gosto de números. Talvez a exceção esteja naqueles que vejo quando vou verificar o saldo da minha conta bancária. Mas existem outros que carregam em si mesmos uma série de curiosidades, muitas das quais sempre me intrigaram. Vejamos como exemplo um deles, que tem coincidências bem interessantes, quando se examina suas relações com múltiplos.

Falo do 142.857. Caso a gente o multiplique por dois, temos o resultado 285.714. As mesmas três dezenas que formam o primeiro, caso a gente as olhe de forma isolada, são repetidas. A diferença é que o 14 sai de uma das pontas e vai para a outra. Se a gente o multiplica por três, obtemos então 428.571. Outra vez os algarismos se repetem com a única diferença que o número um sai da frente e vai para o final.

Se a multiplicação é feita por quatro, o resultado é 571.428. Agora a dezena 57, que era a última, passa a ser a primeira. E se fizermos a conta multiplicando por cinco, chegamos ao número 714.285, com a única mudança sendo o algarismo sete saindo do fim para o começo, com todos os outros mantendo seus lugares de origem.

Vamos agora multiplicar por seis. Chegamos a 857.142, com o bloco formado por um, quatro e dois saindo da frente e indo para o final. Ou seja, inverteram as posições do 142 com o 857. Se usarmos então o fator sete, surge outra peculiaridade: o resultado é 999.999, ou seja, resulta em número formado por seis algarismos nove.

Caso multipliquemos o 142.857 por oito, o produto será 1.142.856. Todos os algarismos originais do número primitivo ainda aparecem, sendo exceção apenas o sete, que foi decomposto em duas partes distintas: um e seis. O número seis ficou à direita, enquanto o número um foi para a esquerda. Vejamos então o que acontece se o múltiplo é o nove. Teremos 1.285.713. O único algarismo que “sumiu” foi o quatro, que acabou decomposto nos números um e três, outra vez colocados nos extremos do produto.

Se continuássemos fazendo isso com outros múltiplos, ainda teríamos singularidades em 11, 12, 13, 15, 17, 18 e muitos outros. Um prato cheio para quem gosta de coisas cabalísticas ou de simples numerologia.

Não existe nada mais concreto do que a nossa necessidade de contar as coisas. E poucas coisas são mais abstratas do que os números, que criamos para esse fim. Eles não passam de símbolos matemáticos que servem para descrever quantidades, medidas e ordem. Os números naturais surgiram da faculdade mental que nos permite reconhecer o fato de que as coisas mudam, se alteram. Que tudo pode ser acrescido ou retirado das nossas vistas, da vida cotidiana. Em tempos muito antigos, a quantidade de ovelhas que se tinha, o volume do que se retirava do solo com as safras, os filhos que nasciam ou morriam. Os números comparavam e comparam grandezas com unidades.

Depois tudo foi se tornando mais complexo, assim como as relações interpessoais e o nosso progresso de ordem material. Então surgiram os racionais e irracionais, primos, imaginários, perfeitos, fracionários e até alguns que ganharam nomes e símbolos próprios, como o Pi (π). Esse é odiado por nove em cada dez alunos do ensino médio, na disciplina de matemática. Ou por 11 em cada dez, se forem estudantes de graduação da área de humanas. O que não deixa de ser também outra irracionalidade.

15.08.2022

O bônus de hoje é com Raul Seixas e a sua música Os Números.

A LUTA DO ZERO PARA EXISTIR

Nosso sistema numérico é posicional. Todos nós sabemos disso, mesmo que não saibamos que sabemos. Vamos explicar com calma. Quando se pega um número qualquer, que seja o três nesse exemplo, estando ele sozinho vale exatamente o que sua expressão gráfica representa: três unidades de uma coisa qualquer. Mas, se acrescentamos outro número ao seu lado direito, um seis que seja, naquele mesmo instante o três passa a valer trinta. Como se a inflação que a gente sente todos os dias no supermercado resolvesse de vez atropelar nosso bolso. Ao trocar de posição, o nosso três aquele deixa de ser unidade e passa a ser dezena, multiplicando por dez o seu valor atribuído. No exemplo dado, com mais seis da unidade que foi acrescida. Ou seja, temos agora o 36 diante de nossos olhos.

O que talvez nem todo mundo saiba é que o zero não é tão antigo quanto os demais números de 1 a 9. E que ele foi criado muito depois, para que se pudesse resolver uma questão que o simples posicionamento não tinha como enfrentar. Voltamos ao 36 que criamos acima. Na antiguidade, se alguém queria escrever 306, apenas afastava um pouco mais o três do seis, deixando um espaço em branco entre ambos. O que causava um problema imenso e nem sempre esclarecia a situação. Foi então que na Babilônia, 300 anos antes de Cristo, sabe-se lá quem teve a ideia de criar um novo símbolo que significaria a presença da ausência. Era uma espécie de “não número”, mas que outra vez multiplicava por dez o que fosse deslocado pela utilização dele. E o três não valia mais nem três nem trinta, sendo agora trezentos. E por que não se poderia usar um dos nove números já existentes para cumprir esse papel? Por que não seria 306 o resultado, mas 316, 326, 336 e assim por diante. O que agora nos parece tão óbvio que até se torna risível, mas não era assim naquele tempo.

Mesmo depois dessa adoção, ainda se passaram mais de 900 anos até que o pobre do zero fosse conceitualmente inserido na matemática. Isso ocorreu na Índia, em 630 d.C., país que já incorporara o necessário conceito abstrato que o zero carrega. Para os indianos, o nada era e continua sendo algo como a eternidade. Na sua filosofia, o universo viera do nada e a volta ao nada seria o objetivo verdadeiro e final de toda a humanidade. Isso explicaria o símbolo circular que foi adotado para representá-lo, que seria na verdade o mesmo do uróboro, aquela serpente que morde a própria cauda. O eterno retorno, o emergir e a espiritualidade.

O que ficou faltando, a partir disso, foi a adoção de “leis” que pudessem permitir e orientar o seu uso nas quatro operações: somar, diminuir, multiplicar e subtrair. Tal providência foi tomada pelo matemático indiano Brahmagupta. Mesmo assim, ainda levaram séculos até que a China e o Oriente Médio incorporassem o zero, de onde então ele seguiu viagem até a Europa. Impressionante é que por lá ele foi duramente combatido e até proibido, em alguns locais e oportunidades. As duas razões para isso foram a economia e a religião. No primeiro caso, a adoção do zero abria caminho para a incorporação de noções de números negativos, o que remetia a empréstimos e dívidas, algo não desejável. E a igreja católica entendia que aceitar o zero seria concordar com a existência de um mundo sem Deus.

Depois de centenas de anos com debates envolvendo ciência, filosofia e religião, foi apenas no Século XV – quase quando o Brasil estava sendo “descoberto” – que o zero foi aceito na família do sistema numérico indo-arábico. Assim, ao invés de nove algarismos, nós passamos a ter dez. Isso promoveu alterações profundas não apenas na matemática, como na física e em outras ciências não necessariamente exatas. Porque o zero nos ensinou a aceitar o distanciamento das necessidades práticas e mundanas, nos remetendo a espaços de total abstração. Ou seja, ao vencer a batalha por sua própria existência, o zero levou a humanidade como um todo a sair vitoriosa.

22.11.2021

No bônus de hoje, a música Pouco Quase Nada Nós, com Nina Ock. A composição é de Alexandre Facchini, que também é multi-instrumentista, produtor e arranjador.