Admito que me incomoda um pouco a expressão que se ouve agora toda hora na televisão, no rádio e em tantas conversas. Esse “novo normal” me lembra muito a “nova política”, outra junção oportuna de palavras que vinha sendo citada como um mantra já nas duas últimas eleições, sem que tenha se concretizado. No caso dela, a política, a tal novidade se mostrou não ser novidade alguma, mas a repetição requentada de velhas e deploráveis práticas. E o que é pior: agora potencializadas por recursos que antes não eram tão usados, como as redes sociais que já existiam, mas não tinham esse peso que ganharam com a manipulação sendo profissional. No caso dele, o normal, a probabilidade de que tenha destino semelhante é imensa. Será usado pelo marketing das empresas, nos discursos políticos, em lives as mais variadas e em propostas e programas de governo – novas eleições se aproximam. Até se diluir como outra esperança frustrada.

A humanidade tem uma capacidade adaptativa surpreendente. Este é o principal fator que nos levou a sobreviver mais do que outras espécies e assegurar o controle sobre a vida de todo o planeta. Entretanto, outra característica muito singular dos seres humanos é a sua capacidade de esquecer. O primeiro realmente pode nos fazer acreditar que, devido às circunstâncias propostas em função da pandemia, se possa ter alterações comportamentais após ser vencida essa situação singular pela qual estamos passando. A segunda aponta para a probabilidade maior, de rapidamente nos esquecermos da experiência vivida. Assim como já se esqueceu do sofrimento de guerras anteriores e outras seguem acontecendo; assim como nos esquecemos dos horrores que foram perpetrados por nazistas e fascistas, permitindo a sua volta.

Na verdade, esquecer pode também ser uma dádiva, mesmo que perigosa, algo tão importante quanto lembrar. Mas isso apenas em circunstâncias muito especiais. Porque deixar passar o rancor, a raiva, o ódio e outros sentimentos ruins é algo positivo. O que não se pode fazer é confundir o perdoar com o esquecer. Perdoar de verdade é uma atitude rara e superior, mas ela pode e deve ser feita sem a concessão do esquecimento, pois esse poderia abrir portas para a repetição dos mesmos erros, de parte a parte. E não se pode desconsiderar que a própria história, seja ela individual ou coletiva, sempre é fruto da nossa memória. Somos a soma do que lembramos e do que aprendemos com essas lembranças.

No caso específico da pandemia, acreditar que ela tenha força para agir como catalisador de mudanças significativas, quando passar, é não levar em conta o que já vem acontecendo. A forma como a sociedade está estruturada nos leva a uma série de pressões e cobranças que colocam outros valores acima da vida. É a produção que não pode parar e o consumo que não deve ser reduzido – como se pudesse existir mercado sem as pessoas –; a política rasteira induzindo previamente o não uso de vacinas que ainda nem existem de fato; o desvio de recursos destinados para a coletividade; o desrespeito de festas clandestinas ocorrendo junto com mais de 160 mil mortes em nosso país, até agora e com número crescente. É a queda de braço sobre a volta ou não do ensino presencial; a aglomeração de pessoas em tantos lugares, sem o recomendável uso de máscaras; o transporte público sendo ponto crítico de contaminação, com veículos ainda mais lotados do que o habitual, porque as empresas reduziram o número de carros/viagem. É o abismo da desigualdade sendo aprofundado, nos últimos meses.

Enquanto generosidade e empatia foram exceções no convívio humano, não há pandemia que nos conduza para uma situação melhor. Enquanto moradia, alimentação, saúde e educação forem artigos secundários, ao mesmo tempo em que armas são mais facilmente disponibilizadas, não há esperança para mais nada. Daí o meu ceticismo, pelo qual me desculpo, mesmo sem ver razão de abandonar.

02.11.2020

No bônus musical de hoje a música A Lista, de Oswaldo Montenegro.

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