O PERIGO DA RUMORESE

O filósofo, dramaturgo e tradutor italiano de origem eslava Igor Sibaldi é um renomado estudioso de línguas e literatura. Foi ele que “batizou” com o nome de “rumorese” a linguagem incongruente que surgiu do nada e se espalhou entre nós, sendo tão ou mais perigosa do que o coronavírus. Ela ataca o pensamento, não o sistema respiratório das pessoas. Mas as suas sequelas são de tal forma limitadoras para o indivíduo e para a sociedade, que mereceria igual ou maior quarentena. E sem cloroquina, porque daí os sintomas podem evoluir até o óbito – se bem que a morte cerebral neste caso é bem mais rápida e provável.

A rumorese é uma linguagem sem sentido, que fala em demasia sem que diga de fato nada. E se instala de um modo ardiloso e clandestino, limitando a capacidade de pensar e decidir do infectado. Na ficção isso já havia sido mostrado em mais de uma ocasião – a arte antecipando a vida real. E um dos mais claros exemplos está no distópico 1984, obra escrita por George Orwell. Nele um sistema de controle das pessoas foi sendo instalado pelo regime político, que tratou de subtrair todas as palavras consideradas perigosas para a sua manutenção. Altera-se o falar e o escrever para atingir o pensar e reagir. Não por acaso o lema do partido em questão era “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”. Também é característico que todos os regimes de exceção que se instalaram na história da humanidade trataram de proibir e eliminar livros e censurar toda a forma de expressão artística. Eles sempre buscaram e buscam controlar conteúdos por ela produzidos. Tiraram e tiram dos currículos escolares a filosofia e a sociologia, reescrevem a história, reduzem os recursos para a educação formal, incentivam a alienação, a religiosidade cega e a ignorância.

A linguagem sem sentido hoje é epidêmica. A sucessão de palavras que propõe é rápida e sem mensagem consistente, ou com mensagens propositalmente contraditórias. A ambiguidade é a norma, capaz de destacar quem não tem nada a dizer. O vazio como método para controlar o entendimento e a razão. Nunca se disse tanta asneira quanto agora, desde a chegada da rumorese. E é ela, não mais o inglês, que está nos universalizando. Nela o caminho para o sucesso, o poder e a glória. Com ela não se relatam mais fatos e “verdades” – até porque a verdade não tem mais nenhum valor. O que se descreve é a intenção, ou a total falta dela, desde que disfarçada. Tanto se “ficou sabendo”, nos últimos tempos, que não se sabe mais nada. É fantástica a parcela da população que foi lobotomizada sem cirurgia, mas com a simples propagação proposital da rumorese. O campo político é muito fértil para sua proliferação, mas ocorre também fora dele. Um exemplo está nos coaches de enriquecimento, outra praga dos dias atuais, com suas frases feitas, tentando provar que você só não é rico porque não quer. “Mude seu mindset, você quer você pode. Acorde cedo, seja proativo. Para deixar de ser pobre você tem que investir”.

O mais incrível é que a rumorese se espraia como se fosse um EAD que não exigiu a matrícula de ninguém. Se propaga graças às mídias sociais, aos robots – que neste caso nem sequer têm corpo físico, sendo meros impulsos virtuais – e à programação televisiva, essa a mais antiga aliada de sua disseminação, de antes mesmo que tivesse esse nome. Também algumas letras de músicas e determinados filmes têm sua parcela de culpa, mas muito menor, até porque em geral seus produtores estão do outro lado do muro nesta queda de braço entre a razão e a estupidez. Acontece o mesmo na imprensa, prevalecendo o interesse empresarial sobre o jornalístico. Depois, a rumorese se multiplica como que por osmose: passa de pessoa para pessoa. E, uma vez instalada, ela dita o que seja credibilidade, que não está mais no conhecimento de quem se pronuncia, mas na suposta autoridade de quem faz isso. O asno se torna doutor, assim como o doutor é reduzido a asno. “O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas e as pessoas idiotas estão cheias de certezas”, antecipou o filósofo inglês Bertrand Russell, que faleceu em 1970.

Não se deve confundir fake news com rumorese. As notícias falsas são um dos alimentos que nutrem os organismos tomados pela rumorese. As notícias falsas circulam no exterior, atingindo as pessoas de fora para dentro. A rumorese percorre o caminho inverso, repleta de loquacidade vazia. E serve apenas para gerar confusão e criar expectativas que jamais serão satisfeitas. Ou, o que é um efeito ainda mais danoso, para destruir expectativas que, se fossem atendidas, poderiam mudar nossa vida para melhor. Mas, acreditem: há antídoto para isso e ele se chama reflexão. Pensar pode ser difícil, mas faz um bem danado.

06.11.2020

No bônus musical de hoje, Jota Quest com a música Dias Melhores. O que, afinal de contas, é o que todos nós sempre desejamos.