Temos uma vizinha, moradora em prédio bem próximo ao nosso, que acredita que os vidros da janela do seu quarto são espelhados. Assim, seguido está de calcinha e soutien, às vezes inclusive sem eles, bem na frente dela. Como os apartamentos são em andares semelhantes, fica tipo assim o filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Convenhamos que não seria justo termos que fechar a nossa, então o jeito é naturalizar o hábito dela e seguir em frente.

O vidro não foi exatamente uma invenção humana e sim uma descoberta que ocorreu por acaso. Consta que mercadores fenícios, acampados numa praia, perceberam o resultado após terem feito fogueira sobre a areia (sílica) e conchas (calcáreo). Altas temperaturas transformam esses dois materiais em vidro. Evidente que depois isso foi aprimorado e, hoje em dia, além deles os fabricantes acrescentam barrilha, alumina e corantes, entre outros produtos fundentes e estabilizantes. Mas o vidro em si é conhecido há quase quatro mil anos.

A fabricação de vidro em escala maior já ocorria na França, por exemplo, desde a época dos romanos, mas atingiu grande estágio tecnológico entre os séculos XVII e XVIII, quando o rei Luís XIV reuniu grandes vidreiros e montou uma companhia que ficou responsável pela produção dos vitrais do Palácio de Versalhes. E processos mecanizados tiveram início com a Revolução Industrial, quando se conheceu o vidro float, também chamado de cristal. Depois disso, este processo, na mão de artesãos de grande habilidade, gerou obras-primas na República Tcheca (Bohemia e Silésia), Itália (Muraro) e novamente na França, com os famosos Baccarat.

Os primeiros espelhos não eram feitos de vidro, mas de metal polido. Teriam surgido na Suméria, onde agora é o Iraque. Feitos de ligas de prata ou bronze, tinham dureza o suficiente para aguentar todo o processo de polimento, feito com areia. Mas as imagens, como se pode deduzir, não eram muito nítidas. Foi apenas no início do Século XIV que artesãos de Veneza (Itália) criaram uma mistura então secreta, feita de mercúrio – muitos deles morreram contaminados – com estanho, que formava uma camada refletora quando aplicada sobre a superfície de um vidro plano. Bem depois disso, no Século XIX, foram descobertas novas formas de espelhar o vidro, sem o uso de metal perigoso. Ele foi trocado com sucesso por prata. Isso também determinou o barateamento do processo e popularizou o produto em todo o mundo.

Espelhos integram várias narrativas literárias, sendo muitas das vezes como um verdadeiro personagem central ou muito relevante. Pode ser citado um conto de Machado de Assis, o maior dos nossos ficcionistas: “O Espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana”, publicado em setembro de 1882. Ou o livro “Alice no Reino do Espelho”, de Lewis Carroll. E quem não conhece a frase clássica da rainha má, madrasta de Branca de Neve? “Espelho, espelho meu”, começava ela buscando respostas vindas do seu, que era mágico. Dentro dessa peça habitaria o Escravo, um espírito aprisionado que surge com imagem parecida com a de uma máscara teatral, sempre cercado por fumaça e fogo, dizendo apenas a verdade. Fernando Sabino publicou “O Menino no Espelho”, com aquilo que chamou de memórias infantis. E em recente telenovela da Rede Globo a personagem principal entrava num velho espelho existente, em casarão abandonado, viajando para um tempo passado, em encarnação anterior que tivera. Exemplos, portanto, não faltam.

Em Blumenau, Santa Catarina, existe o Museu Glaspark, também chamado de Museu do Cristal. Pequeno em tamanho, mas merecedor de uma visita, ele tem exposição de peças raras, venda de produtos os mais variados e oferece a possibilidade de se acompanhar a fabricação de objetos. Foi fundado em 1997 e integra o roteiro turístico da região – que, aliás, merece visita mesmo fora do período da Ocktoberfest. Sobre o início desta crônica, eu poderia aproveitar a mesma deixa para contar a história da origem das roupas íntimas femininas. Mas esse assunto fica para outra oportunidade,

27.10.2020

O bônus musical de hoje é a música Espelhos D’Água. Clip com Patrícia Marx e Seu Jorge, gravado em 2013. Já teve quase sete milhões de visualizações.

1 Comentário

  1. Gostei da postagem sobre vidros e espelhos, estes são objetos, peças, que muito me atrai! Por ter interesse na história, fui visitar o Museu do vidro ( Murano, Itália) e sua criação bem como a visita ao Palácio Versalhes, pude constatar a exuberância e beleza dos vitrais que nele existe.
    Muito bem vinda a postagem, bem esclarecedora.
    Por outro lado os espelhos, vidros e cristais cada um tem a sua função útil e também “encantadora” e talvez a pessoa a qual se referes na sua postagem seja uma amante (assim como eu) destes objetos incríveis e até indispensáveis em nossas vidas, ainda que ela não tenha percebido o lado de fora da janela ou desta questão!!
    O melhor como falastes: é naturalizar o hábito dela.
    Um Abraço

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