Me impressiona a enorme propensão que todos temos de deixar o bom senso de lado, em decisões pessoais e coletivas. Sem generalizar, creio que somos, a maioria de nós, muito bons em cometer equívocos, em função disso. E nem falo dessas coisas óbvias, como a escolha entre um professor universitário, humano e muito educado; e um miliciano boçal. Me refiro mesmo a coisas cotidianas, muito menores e mais simples. Como decidir, na hora do lanche da tarde, quando estamos diante de uma fruta ou de um punhado de biscoitos amanteigados, que ainda tratamos de cobrir com generosa camada de Nutella. Na verdade, nem estou sendo muito feliz nesse exemplo, porque na presença deste creme de chocolate e avelãs não pode mesmo existir bom senso que resista.

Quando se é muito pequeno ainda existe aquela desculpa de estarmos “descobrindo o mundo”. Terra na boca, tentativa de colocar o dedo em alguma tomada ou puxar a toalha para ver o que há sobre a mesa. Nos três exemplos ouvimos na hora um NÃO, mas nos fazemos de bobo e logo buscamos repetir a experiência interrompida. Afinal, acreditamos que nossa autonomia precisa ter no mínimo o tamanho da nossa curiosidade. Mas, e depois, quando crescemos? Perdemos a desculpa sem que, em muitas ocasiões, se ganhe em troca uma dose apropriada de sensatez, critério e tino. Assim, se aperta muito o acelerador do carro acreditando que o freio será sempre suficiente, depois. Se faz uma comprinha a mais, mesmo que desnecessária, supondo que o salário se ajusta de modo automático aos nossos desejos. E vamos trocando o certo pelo duvidoso, apostando nossas economias em qualquer pangaré, jurando que por alguma razão inexplicável a nós o vírus não irá contaminar.

Por que tantos de nós comemos quantidades pantagruélicas e depois gastamos tempo e dinheiro em dietas e exercícios físicos, sabendo que a chance de recuperar o peso anterior é inversamente proporcional à gula? Aliás, um parênteses: esse termo foi adotado devido à obra A Vida de Gargântua e de Pantagruel, romance escrito por François Rabelais, no Século XVI, a respeito de dois gigantes. O segundo era filho do primeiro, tendo o texto uma veia de humor. Satírica, a obra também trazia muita crueza e violência. Voltando ao que poucos de nós temos, ou possuímos em doses insuficientes, o bom senso não comparece em tantos outros momentos em que deveria estar presente. Discussões no trânsito, por exemplo. Ou na perda de tempo, quando se tenta inutilmente explicar para aquele conhecido que nunca houve comunismo no Brasil. Ainda: reagir em assalto à mão armada; quebrar objetos em casa, quando contrariado(a); lavar a calçada em época de seca; gente branca como a neve se expor ao sol do meio dia, sem protetor solar. Quem está lendo, aposto que lembrou de várias outras possibilidades.

Há quem case com alguém com quem já brigava feito cão e gato, no período de namoro. Dá para acreditar que tudo vai mudar depois? Pagar dívida com outro e outro e outro empréstimo. Beber muito com a certeza de que não terá ressaca. Apostar que aquele cão estranho e grande não morde. E até mesmo que dessa vez não passa: os números que serão sorteados na loteria vão ser exatamente os do seu volante. Nesse último caso pode ser apenas uma esperança descomunal, dessas que todos nós temos muito seguidamente.

Agora, uma derrota inaceitável do bom senso é achar que Moro tem condições de ser um presidente da República capaz de resolver todos os males que ele mesmo causou, indiretamente. Pensar que um juiz que se mostrou tendencioso e desonesto, que jamais foi imparcial e sempre teve segundas intenções com suas sentenças, possa agora ser a liderança da qual tanto se precisa, o estadista que irá reconstruir minimamente o país que a extrema direita nos deixará como herança, não tem nada de razoável. É mais do que falta de discernimento. Fica mais próximo de uma pós graduação em desequilíbrio. Prefiro acreditar, sinceramente, que agora a força de setores da imprensa não será suficiente para criar uma opinião pública dirigida e perversa, como já fez. E que as últimas pesquisas eleitorais que essa mesma imprensa se apressou em divulgar, propondo e escolhendo uma sonhada “terceira via” são tão falsas quanto uma nota de três. Ou, melhor ainda, tão falsas quanto as convicções condenatórias do ex-magistrado.

04.12.2021

No bônus de hoje, a música Bom Senso, de Tim Maia. Quem canta é Seu Jorge.

O livro de François Rabelais, citado no texto acima, pode ser adquirido bastando clicar na imagem de sua capa, que está acima. Isso remete ao site onde você pode ver detalhes e decidir se a compra é de seu interesse. Se for fazer isso, favor usar esse mesmo link para a aquisição, pois o blog será comissionado.

3 Comentários

  1. Foste feliz nas inúmeras comparações. Torço junto contigo para que não cresça a última falta de bom senso, fico horrorizada só de pensar naquilo.

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  2. I agree that common sense seems to be in decline though it is hard clearly identify what are the causes?
    Some people might suggest that as life has become more reliant on technology, that we trust our own judgement less. I think using common sense is in the common good, but common sense needs to be extolled by the leaders of society, to praise its use, and encourage more of us to use it.

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