Não somos nem masoquistas e nem sádicos. Ao menos, posso afirmar, não em nível patológico. Mas quem conhece, ama e vive o futebol tem que admitir que é impossível ser torcedor sem conviver com esses sentimentos extremos de amor e ódio, de alegria incontida e sofrimento inenarrável. Sem a busca do êxtase que ambos podem propiciar, por razões distintas. “Hinchas” (fãs) argentinos, passionais como qualquer bom tango, que o digam. Se tem uma frase que os distingue é “Em las buenas siempre y em las malas mucho más”. Essa incondicionalidade é a essência desse esporte. E nós gaúchos, aqui pertinho dos “hermanos”, os entendemos muito bem. Porque somos idênticos no modo de torcer.

Outra característica é que, além de incondicional, esse sentimento é eterno. Podem nos pedir qualquer coisa, menos que a gente abandone nosso clube. A gente troca de cidade, de trabalho, de companheira ou companheiro e até de religião. Podemos alterar hábitos os mais variados, mas nunca, nunca mesmo se irá desistir das cores que tomaram conta do nosso coração. E se alguém que você conhece fez isso, não era um torcedor verdadeiro. Nunca tinha de fato sido tocado pela verdadeira febre, não terá a marca de fogo impressa na alma e muitas vezes tatuada na pele. O torcedor extremo, que na verdade é o único que de fato existe – se não for extremo é no máximo simpatizante e todos nós odiamos esse termo morno –, sofre até quando perde o cara ou coroa que sorteia os lados do campo para o início de uma partida. Vibra com carrinho, com escanteio, usa a camisa em todos os jogos, canta os mais absurdos cânticos, gasta o que não tem para garantir ingressos.

Esse torcedor comemora vitória em amistoso, transborda de alegria quando ganha um título. E quando perde, pode até chorar escondido. Mas estará de volta na arquibancada ou na frente da televisão, no próximo compromisso do seu time. Ele fica louco e critica os dirigentes que não contratam quem gostaria. Busca no aeroporto o suposto craque que chega. Sem abrir mão, lógico, do seu direito de amaldiçoar cinco gerações do mesmo atleta, quando ele perder um gol. E vai voltar a fazer juras eternas ao mesmo, tão logo ele aproveite a próxima chance criada.

Eu, particularmente, me enquadro em várias dessas características que acabei de citar. Só nunca fui em aeroportos nem tatuei distintivo ou taça no corpo, porque seria mesmo um exagero. Mas já estive em jogos do Grêmio, de Criciúma ao Maracanã, de Erechim ao Mário Cini onde o time reserva enfrentaria o Pratense. Já trabalhei como repórter de campo em Grenal, tendo que ser profissional na descrição de gol daquele que é o maior adversário. Muitas vezes voltei para casa arrasado por dolorosas derrotas. Mas já comemorei Libertadores no Olímpico e no Parcão. E, o maior de todos os orgulhos, dividi essa paixão com a minha filha Bibiana. Em algumas dessas ocasiões vitoriosas ela estava comigo. Em vários momentos menos felizes, um consolou o outro.

Estou escrevendo isso quando o tricolor está num incômodo lugar, entre os últimos colocados no Brasileirão deste ano. E quando faltam oito dias para um Grenal que poderá ser verdadeira encruzilhada para o nosso destino, nessa e na próxima temporada. Pior é que entre o dia de hoje e esse confronto ainda teremos duas partidas, contra vice-líder e líder da competição. Desse jeito, estou quase querendo ver se temos uma funda e uma pedra, para cada um desses três complicados jogos. Vai que alguém do nosso lado incorpora um David. Fé nós também ainda temos, mas claro que não vai aqui nenhuma comparação: faço apenas uso de uma figura. Aliás, a propósito disso, o estudioso da Bíblia, Joel Baden, professor na Universidade Yale, afirma em seus estudos que o confronto não se deu bem assim, que não houve a morte do gigante naquele momento. No seu livro David: a vida real de um herói bíblico ele tenta recuperar a imagem histórica e remover as lendas, daquele personagem igualmente amado por judeus e cristãos, uma vez que foi um dos maiores reis de Israel e ancestral de Jesus.

Voltando ao futebol, onde as batalhas são apenas simbólicas, repito o que afirmei no título: o sofrimento é essencial. E acrescento que uma das vantagens é que ele nunca se torna definitivo. O derrotado pode se reerguer, o vitorioso não raras vezes é surpreendido depois. E ser também surpreendido é o que mais quero, por esses dias. Até porque novas derrotas não seriam surpresa nenhuma. Agora, que fique bem claro e de antemão: aconteça o que acontecer, em 2022 vou como sempre estar no lado azul da força, esteja ela onde estiver.

29.10.2021

No bônus musical de hoje, Titãs. A música, bastante apropriada para o momento, tanto clubístico quanto da política brasileira, é Enquanto Houver Sol. Enfim, haveremos de encontrar saídas.

3 Comentários

    1. Pelo que sei, também também na Polônia existe um grande interesse por futebol. E entendo ser possível que se tenha controle sobre as emoções, esportivas ou não, sem que a indiferença seja recurso necessário. Paixão faz bem, desde que não nos torne cegos.

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