Uma das tantas coisas que nunca consegui entender – sou um homem que tenta ter certezas, mas é cheio de dúvidas – é a razão dos preços dos combustíveis no Brasil serem atrelados ao dólar. Nosso país vinha com produção crescente nos últimos anos e, com as descobertas do pré-sal, em 2006, durante o governo Lula, atingimos a autossuficiência em petróleo. Então, o raciocínio passa a ser aparentemente simples: podemos tirar do nosso solo e do fundo do mar a quantidade necessária, através de uma empresa brasileira, com mão-de-obra local paga em reais, temos as refinarias e as distribuidoras, quem consome mora aqui, recebe e paga em moeda nacional… Assim, qual a razão da moeda do Tio Sam ser referência? Para explicar essa aparente incoerência, temos que voltar no tempo e também rever as políticas que vêm sendo adotadas.

Até o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) a Petrobras não tinha ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Ele, além de fazer isso, colocou na presidência da empresa Francisco Gros, que era banqueiro ligado ao norte-americano Morgan Stanley, já como uma das primeiras providências necessárias para mais tarde vendê-la. Tanto o presidente quanto seu partido e demais aliados preferiram desconhecer a razão pela qual ela foi criada, que era assegurar independência e desenvolvimento para o país, isso em 1953, reduzindo ou zerando a dependência estrangeira e mantendo preços razoáveis. Desde essa decisão de FHC, mudou a composição acionária, ficando 64,21% com a União e 35,79% com os chamados “minoritários” (24% são estrangeiros). E, para atender às expectativas dessa parcela, que não chega a um quarto do capital total, os preços passaram a ser ajustados aos que cotam em Londres e em Rotterdam. Ou seja, quem passou de certa forma a decidir sobre os destinos da empresa foi uma minoria, distante do Brasil.

A segunda razão, tão entreguista quanto a primeira, foi a decisão política de, mesmo detendo tecnologia e tendo parque tecnológico para tanto, ser mantida a importação desnecessária de gasolina. Explicando melhor, não se permitia que as refinarias transformassem o nosso petróleo em combustíveis, na quantidade necessária para o consumo interno, sendo isso fixado em 85% e nos obrigando a trazer de fora os outros 15%. Agora mesmo, para piorar ainda mais essa situação, o governo Bolsonaro está vendendo as refinarias que temos em nosso território para empresas estrangeiras. Ou seja, mesmo essa fatia antes reservada ao que era nacional deixará de render riqueza interna, sendo o seu lucro levado para fora do país, pelos compradores estrangeiros das plantas.

Durante a presidência de Pedro Parente, que foi também executivo da RBS, o diesel chegou a sofrer 15 reajustes em um único mês, em 2018. Isso foi fator desencadeante da greve dos caminhoneiros, que terminou sendo usada politicamente pela extrema-direita, ajudando seu projeto de chegar ao poder. Agora, desde que ocupam o Palácio do Planalto, o grupo está acelerando o projeto que tinha sido gestado pelo PSDB. A imprensa silencia, não citando por exemplo que nenhuma das outras estatais do petróleo em todo o mundo está à venda, além da nossa. Todas as demais seguem sendo consideradas estratégicas e controlam 91% das reservas de todo o planeta. As privadas possuem apenas 9%, mas é evidente que adorariam abocanhar um percentual maior. A Petrobras é um peixe grande e ferido, com tubarões ao redor atraídos pelo sangue. Uma gigante que detém tecnologia única em termos de exploração feita em águas profundas. E vai ser entregue baratinho, do mesmo modo como FHC entregou a Vale do Rio Doce, então a maior mineradora de ferro de todo o mundo – ela também produz manganês, cobre, bauxita, alumínio e vários outros metais.

Voltando à questão do preço da gasolina, chega a ser engraçado quando se houve algum desinformado gritando “vai para a Venezuela”. Este país vizinho está sofrendo horrores com as sanções impostas pelos EUA e pelo fato de precisar importar quase tudo, uma vez que cometeu o erro histórico de fiar-se apenas nas suas reservas de petróleo sem investir em algum projeto consistente de industrialização. Por isso enfrenta agora uma séria escassez que provoca sofrimento da sua população. Ainda assim, a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), que equivale à Petrobras, segue totalmente estatal – no fundo, a verdadeira razão do bloqueio – e subsidiando desenvolvimento e consumo no país. A gasolina por lá custa o equivalente a alguns centavos de Real o litro. Eles possuem 19 refinarias, seis delas no seu território e outras 13 em outros países. Mais um detalhe desconhecido da maioria: a empresa venezuelana mantém 13.680 postos de combustíveis nos Estados Unidos, mesmo que talvez não estejam conseguindo transferir de volta o lucro que eles asseguram.

Para concluir, vamos lembrar que quando tivemos a primeira e única mulher presidente da nossa história, Dilma Rousseff, o preço mais alto atingido pelo litro da gasolina no Brasil foi de R$ 2,60. Nesta semana passou de R$ 6,70 em vários municípios do interior do Rio Grande do Sul. Não estou considerando aqui o reajuste anunciado ontem, 02 de março. Com ele os preços já subiram 41,5% apenas nos 61 dias de 2021. Como sempre adoramos comemorar recordes, estou pensando em arranjar uma camiseta verde e amarela e correr para a Praça da Encol. Pensando bem, talvez não seja apropriado, porque os frequentadores daquele ambiente não costumam usar máscaras e o único distanciamento social que conhecem é o que os separa de seus empregados.

03.03.2021

No bônus musical de hoje temos uma apresentação da Orquestra Petrobras Sinfônica, que tem 30 anos de história e deverá continuar existindo enquanto os novos “donos” da empresa permitam. Nessa gravação, com regência do maestro Isaac Karabtchevsky e arranjo de Dudu Viana, a atriz e cantora Lucy Alves interpreta Feira de Mangaio, uma composição de Sivuca e Glorinha Gadelha.

6 Comentários

  1. Meu amigo, parabéns por sua excelente matéria, escrita com sábias palavras e muito coerentes! Eu tento entender este país, mas não consigo; tento acreditar na política e nos políticos desse Brasil, mas só me decepciono. Realmente temos tudo para ser um país próspero e com auto-subsistência, no entanto, não vemos nada disso acontecer, ao contrário, estão vendendo as nossas riquezas por uma bagatela.
    E gostei da Orquestra Petrobras Sinfônica! Parece até ironia, mas estão para colocar a nossa Petrobrás também na Feira de Mangaio.

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