Muitas e muitas vezes ouvi minha mãe e minha avó materna dizerem “meteu-se a avestruz, aguente o ovo”. Era quando a gente, na luta pelas descobertas naturais da infância, teimava em fazer alguma coisa que tinha tudo para dar errado, mesmo depois de advertido pela experiência dos mais velhos que aquilo terminaria desse modo. Tenho a impressão que hoje em dia as pessoas perderam essa capacidade de explicar as coisas com frases ou expressões assim, muito acessíveis mas repletas de significado. Um modo quase singelo de mostrar o paradoxo de um mundo que é, ao mesmo tempo, extremamente simples e complexo. Hoje em dia o que se tem para quase tudo é a explicação científica de um lado, em oposição com a burrice explícita do outro. No primeiro caso, algumas vezes as pessoas se perdem por excesso de informações; no segundo, por falta delas, de um mínimo de bom senso e até de raciocínio lógico – esses não conseguem ver nem mesmo o “óbvio ululante”, de Nelson Rodrigues.

Um caso evidente desses extremos hoje adotados está no imaginário conflito entre a crença e a certeza científica. Digo ser imaginário porque na verdade a ciência e a religião não são de fato conflitantes. A contenda se estabelece por interesses, alguns bem claros e outros obscuros, isso apesar da ciência não negar de modo algum a religião. O que ela pode afirmar, e faz isso categoricamente, é que Adão não foi feito de barro e que não cedeu costela alguma para ser transformada na companheira Eva. A evolução das espécies não exclui a existência de Deus, porque a magnitude da criação estaria mesmo na capacidade do que é criado se transformar. Uma inteligência superior deve realmente ter criado a Terra, mas com certeza não a fez plana. No sentido inverso, entretanto, o fanatismo religioso tem feito um enorme esforço para negar a ciência.

Ululo é o nome dado ao uivo dos cães e ao ruído semelhante a esse que eventualmente faz o vento. Um som lamentoso, plangente. Algo fácil de reconhecer, claro, evidente. Assim, o óbvio ululante é a redundância da obviedade. E se tornou título de um dos livros do jornalista, dramaturgo e escritor pernambucano Nelson Rodrigues. Nele há inúmeros relatos selecionados entre suas crônicas publicadas na coluna Confissões, do jornal O Globo. Em todos ele tenta sintetizar em prosa o que andava acontecendo nas ruas do Rio de Janeiro e no mundo todo, numa época na qual tudo parecia estar virando de pernas para o ar – imaginem o que ele não seria capaz de escrever, na atualidade. Fazia isso com deboche e com coragem espantosa, características muito em falta no jornalismo atual.

Mas, voltando ao conflito entre o conhecimento e a irracionalidade, está crescendo o número de negacionistas. Gente para quem a evidência não é verdade; e a verdade jamais será evidente. Pessoas que não acreditam em vacinas, no aquecimento global e no risco dos transgênicos. Que asseguram que as queimadas não oferecem perigo nem podem causar quaisquer danos – exceto, claro, se com isso não sobrar sequer uma única goiabeira. O mesmo grupo jura que a pandemia é uma farsa com objetivos ideológicos, que não existe corrupção no atual governo federal e, provavelmente, que a vereadora Marielle Franco se matou, com quatro tiros na cabeça, todos disparados pelas costas, só para jogar a culpa nas milícias.

Por outro lado, está na hora da academia aprender a falar de um modo que possa ser melhor entendida. Não adotar uma postura mais próxima da realidade dos interlocutores é não ser sequer ouvida, muito menos entendida. É abrir espaço para que outras vozes assumam o lugar do conhecimento. E a desinformação é mãe da ignorância e do medo, avó da subserviência, um tipo moderno de escravidão. Quem é ensinado a pensar aprende também a posicionar-se. Passa a ter uma opinião que é sua e não a reprodução de outra intencionalmente plantada. Passa a fazer diferença e viver, além de existir. Passa a enxergar o óbvio, seja ele ululante ou não.

23.10.2020

No bônus musical de hoje a música Admirável Gado Novo, que Zé Ramalho lançou em 1979, em clip dos Plugados.

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