Há um ditado popular que afirma ser pior cego aquele que não quer ver. O significado é claro: pessoa que se recusa a enxergar uma obviedade que esteja escancarada na sua frente; alguém que se recusa a perceber a realidade. Isso não é algo incomum, mas a maior parte das pessoas, mesmo conhecendo e usando essa expressão, desconhece que a sua origem vem de um caso real e assombroso.
No ano de 1647, em universidade existente na cidade de Nimes, na França, um professor médico chamado Vicente de Paul D’Argenrt realizou um revolucionário transplante de córnea. Isso é algo relativamente comum, hoje em dia, mas se tratava de procedimento prodigioso para a época. O paciente foi um aldeão das redondezas, de nome Angel. Acontece que o sucesso da medicina não foi bem recebido pelo operado. Quando passou a ver o que acontecia ao seu redor, o homem ficou horrorizado. Segundo ele, o mundo antes imaginado era muito melhor do que o real. Por isso, pediu ao cirurgião que revertesse o processo e lhe devolvesse à escuridão. A situação foi tão inusitada que precisou ser decidida simultaneamente nos tribunais de Paris e nos salões do Vaticano – a influência da religião católica na época era praticamente decisiva. Este foi o homem que ficou conhecido como o cego que não deseja ver.
Não sei se a história relatada acima aconteceu exatamente deste modo. Mas, como diriam descendentes de italianos amigos meus, “se non è vero, è molto bem detto” – se não é verdade, é muito bem contado. E como agora vivemos numa época em que a cegueira parece epidêmica, somos levados a pensar sobre essa situação e também sobre a imensa diferença que existe entre ver e enxergar. Evidente que não me refiro à cegueira física, deficiência que infelizmente acomete significativa parcela da população. Falo desta epidemia na qual os olhos se fecham de forma voluntária, que é resultante da alienação. A cegueira da aceitação de inverdades difundidas; da negação da ciência; da utilização da religião não como aproximação do homem com Deus, mas como distanciamento das pessoas entre si; a cegueira da naturalização da violência; da insensibilidade com a dor do outro. A epidemia da ignorância e da estupidez.
Não se fica muito distante da realidade associando todas essas situações citadas a uma origem básica: a desinformação. Se o conhecimento lança luzes sobre nossas vidas, promovendo liberdade e crescimento, quem deseja poder e domínio não vindos do exemplo precisa semear a escuridão para alcançar esses objetivos. Paradoxal é que justo a internet e as redes sociais, que tinham tudo para ser a forma mais democrática de acesso à educação, são hoje um farol às avessas. O boato, a mentira e a dissimulação elegem governos; fazem cair a cobertura vacinal das nossas crianças; incentivam a destruição do meio ambiente; destroem reputações ilibadas; constroem uma falsa opinião pública – pois ela é privada, de alguns grupos. Tudo diante dos olhos fechados de uma parcela significativa da população. O rebanho cego que segue alegremente para o matadouro e ainda agradece pelo seu destino.
No livro Ensaio Sobre a Cegueira, do português José Saramago – e no filme inspirado na obra, com Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga e Gael Garcia Bernal –, a cegueira inexplicável que atinge a população assim como vem, vai embora. Mas antes faz com que aflore o que de pior existe no ser humano, com toda a espécie de atrocidades e desrespeito. Tomara que por aqui também aconteça isso. Que em breve todos acordemos do pesadelo, ficando ele apenas como uma impressão negativa que talvez possa ser apagada e esquecida, tão logo nossos olhos se acostumem outra vez com a luz.
02.06.2020
No bônus desta postagem, apresento o trailer oficial do filme Ensaio Sobre a Cegueira, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles.
Pois é isso aí meu amigo! Nosso mundo está daí pra pior! Cego é aquele que não quer ver! Nunca vi tanta gente em nosso país, polarizado tudo. Hoje vivemos uma das maiores epidemias/pandemias que este país já viveu e vejo gente dizendo que é tudo normal. Achando que não é nada. Muitos radicalizando tudo pro lado da política, quando o negócio é muito sério e trata-se de saúde pública. Estamos falando do destino e sobrevivência de seres humanos e isto não tem preço. É lamentável ver como a cegueira do discernimento e sensibilidade tem aumentado em nosso país. Simplesmente triste de ver! Abraços!
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A questão meu amigo é que saúde pública também é política. Assim como foi escolher entre a lucidez e a loucura.
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