Conto o milagre, mas não revelo o nome do santo. Ou dos santos, uma vez que são no mínimo a cidade e o jornalista envolvido. Tempos atrás, um colunista político que andava irritado com o volume de bandalheiras que via acontecer na Câmara, afirmou em texto publicado no jornal onde escrevia que metade dos vereadores do município era composta por ladrões. Enfrentou uma reação violenta dos edis, que lhe exigiram uma retratação imediata. O que ele fez em outra coluna, na qual disse que havia naquela casa uma metade entre os integrantes que não era composta por ladrões. Eles ficaram satisfeitos, por incrível que pareça.

Para que alguém entenda uma ironia, tem que ter um arcabouço mínimo de conhecimento – nem vou falar de inteligência, para que ninguém venha a sentir-se ofendido. É necessário entender o assunto que está sendo tratado e ter uma apropriação razoável do idioma, para perceber que a pessoa está dizendo ou escrevendo o oposto daquilo que deseja de verdade transmitir. Isso é feito de modo proposital, para obter alguma reação determinada do ouvinte/leitor. Muitas vezes, para que ele note o que está sendo proposto, somando-se ao mesmo posicionamento. Mas, em outras ocasiões, justamente para que fique evidente não ter a pessoa ou as pessoas que são interlocutoras, condições de perceber isso. Como no exemplo do parágrafo anterior.

Uma das coisas que estou pretendendo dizer é que existem diferentes formas de se fazer qualquer relato. Pode ser direto ou não; buscando o recurso das exemplificações; reforçando o falar/escrever com o agir; e até mesmo desdizendo. Agora me dei conta de que conhecimentos outros, como a geometria, por exemplo, podem ser bons agentes de esclarecimento ou confusão. Digo isso porque pouco tempo atrás – logo antes da virada do ano – eu vi um sujeito dando entrevista na televisão, na qual garantiu que determinada atitude dele e de seu grupo iria provocar “um giro de 360 graus na situação”. Foi uma admissão de que não adiantaria nada, pois ao final estariam no ponto de partida. Também se tratou de uma comprovação absoluta de tríplice desorientação: linguística, espacial e ideológica. Mas o celular dele não estava sobre a cabeça, o que é uma atenuante mínima.

Narra quem escreve profissionalmente, como jornalistas e escritores. Narramos todos nós, no convívio diário com outras pessoas, quando se descreve algo ocorrido ou se aponta nosso desejo que ocorra. Através dessa linguagem, coloquial ou não, nos colocamos e somos colocados todo o tempo diante da concretude dos fatos e do mundo. Aliás, nem sequer existe a realidade se ela não for capaz de ser descrita, narrada, demonstrada. Até no silêncio existem vozes. Seja naquele proposital, numa cena de filme ou num espaço dado em texto escrito. Ou no caso de vir a questão de uma limitação física, quando o gestual e a linguagem de sinais buscam remover ou atenuar obstáculos.

Foi a palavra que constituiu o que há de material e também de espiritual, aquilo do qual também somos resultado. Nada somos sem convívio. E não há convívio sem narrativas. Viver é estar em, é estar com. Nada há sem que tenha sido expressado. Se quisermos considerar aspectos míticos e religiosos, que se cite, por exemplo, o Evangelho de João. Nele está claro o poder da palavra: “No começo era o Verbo e o Verbo estava com Deus, o Verbo era Deus”.

Para quem prefere visões mais mundanas, vamos com o poeta cuiabano, Manoel de Barros: No descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo./ O delírio do verbo estava no começo, lá/ Onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos./ A criança não sabe que o verbo escutar/ Não funciona para cor, mas para som./ Então, se a criança muda a função de um verbo, ele delira./ E pois./ Em poesia é a voz do poeta, que é a voz/ De fazer nascimentos./ O verbo tem que pegar delírios/. E como é bom delirar. Nem que seja quando se diz que metade de uma determinada Câmara de Vereadores tem problemas éticos sérios e se erra, uma vez que a outra metade é idêntica.

03.01.2023

A exposição oral para pequeno grupo constitui também uma narrativa

O bônus musical de hoje é Passarinhos, com Emicida e participação de Vanessa da Mata.

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