A TÁTICA DO EMBURRECIMENTO COLETIVO

Decididamente, não é por acaso que voltamos a discutir o indiscutível, nos últimos tempos. Há um projeto claro que exige, para sua execução, que se fixe o olhar apenas no passado, desconsidere o presente e perca a fé no futuro. Essas três premissas são exatamente o contrário do que fazem povos e nações que controlam seus destinos. Olhar para o passado é válido como aprendizado, não como idolatria. Desconsiderar o presente é não dar valor ao que já se conquistou em conhecimento e progresso, gerando descontentamento sem rosto e razão. Perder a fé no futuro é o primeiro passo para se depositar na mão dos outros decisões que precisariam ser nossas; é terceirizar sonhos e esperanças.

A discussão do já esclarecido e comprovado é um retrocesso. Podemos dar exemplos claros disso. Foi com Pitágoras, seis séculos antes do nascimento de Cristo, que surgiu a noção da esfericidade da Terra. Aristóteles, por bases empíricas, foi outro que aceitou essa realidade, em 330 a.C. Um astrônomo, médico, matemático e cônego católico polonês nascido em 1473, chamado Nicolau Copérnico, desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. O florentino Galileu Galilei, nascido em 1564, retomou os estudos de Copérnico. Além de confirmar o que esse havia afirmado, observou e analisou as fases de Vênus, quatro satélites de Júpiter, os anéis de Saturno e as manchas solares. Ele era físico, astrônomo e engenheiro.

Em maio de 1796 o naturalista e cirurgião britânico Edward Jenner realizou um experimento que criou a primeira vacina. Ele inoculou líquido retirado da lesão de uma ordenhadeira de vacas de nome Sarah Nelmes, que tinha uma doença chamada cowpox – uma variedade da varíola que atingia bovinos –, no garoto James Phipps, de oito anos de idade. Fez isso ao perceber que pessoas que eram acometidas da doença provinda dos animais se tornavam imunes à varíola humana. O próprio termo “vacina” tem essa mesma origem, vindo do latim vaccina, que significa “pertencente à vaca” – logo, é quase incompreensível que parte do rebanho seja contra sua aplicação. Retomando o tema, Louis Pasteur, químico e biólogo francês nascido em 1822, considerado o fundador da microbiologia, consolidou esse conhecimento ao descobrir um antígeno contra a raiva. Desde então, com o aprimoramento da ciência médica, inúmeras enfermidades passaram a ser combatidas com a estimulação dos mecanismos de defesa do organismo das pessoas, através de várias técnicas distintas, todas igualmente eficientes.

Em pleno século XXI o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo de Bolsonaro, que na verdade se dedicava à astrologia, afirma que a Terra é plana, para regozijo de seguidores obliterados e espanto de quem ainda não perdeu a razão. Em pleno século XXI há pessoas garantindo que dentro das seringas tem um chip – essas chapinhas metálicas, como as que existem em cartões de crédito – que, ao ser injetado no corpo, passa a controlar as nossas vidas. Uma proeza, no mínimo pela incompatibilidade de tamanho e material, que associa um medo ancestral com ficção científica super avançada, sendo os dois ingredientes temperados por uma teoria da conspiração mirabolante. Vejam que me concentrei aqui em apenas dois dos muitos pontos que o negacionismo reinante tem defendido.

A verdadeira questão está no fato de que, enquanto se discute algo desnecessariamente, deixamos de cuidar de assuntos essenciais e que podem ser de fato urgentes. E, com a distração, “passa a boiada” como foi dito sem a menor vergonha, pudor ou cerimônia. O emburrecimento é necessário por isso. Tirem as crianças das escolas e “eduquem” em casa. Censurem livros, músicas, exposições de arte, opiniões contrárias venham de onde vierem. Calem a imprensa, desacreditem a justiça, dominem as redes sociais. Preguem o ódio, defendam que a população se arme. Atribuam aos adversários todos os defeitos possíveis, até aqueles que são seus e não deles. Encubram crimes, quando forem praticados por parceiros. Levantem bem alto as bandeiras da família, da religiosidade – mesmo essa sendo falsa –, da tradição e da propriedade.

Os encantadores da atualidade têm poder semelhante ao que tinha o Flautista de Hamelin, no conto de tradição oral reescrito pelos Irmãos Grimm. Com a sua música o homem hipnotizava ratos que ocupavam a cidade, estes o seguem cegamente e terminam morrendo afogados no Rio Weser. Ao não ser pago pelo serviço de livrar a população do sério problema, ele termina fazendo o mesmo depois, com todas as crianças do lugar. Elas também o seguem e são trancadas numa caverna. Restam nas casas apenas habitantes opulentos, com celeiros cheios e a consciência vazia, vivendo em silêncio e tristeza, todos protegidos por muralhas sólidas.

Hoje quem primeiro segue a cantilena é comparado com um rebanho bovino. O bicho é diferente, mas o final para o grande grupo pode ser muito semelhante. A nossa esperança toma o lugar dos pequenos, podendo ser subjugada num momento seguinte. Se no conto a praga eram os roedores, hoje o messias encarna a própria calamidade. E está no comando de uma “orquestra”, com os bichos correndo o risco de pagarem com a vida pela sua ingenuidade, pela ignorância que estão aceitando que lhes seja incutida. A idiotização programada rebaixa a inteligência coletiva brasileira, mas serve sob medida para que no fim restem apenas os empanturrados. E também quem sonha com a permanência no trono, pouco importando se vai reinar sobre cadáveres, sobre a carcaça do que fora uma sociedade promissora.

15.07.2021

No bônus de hoje, a cantora e compositora norueguesa Sigrid Raabe nos presenteia com a interpretação da música Everybody Knows (Todo Mundo Sabe), de Leonard Cohen.