CORPOS DESABITADOS

Em passado recente vivemos, na literatura e no cinema, uma espécie de invasão de zumbis. Livros e filmes abordando variações desse tema ou essa espécie de “personagem” tomaram conta de livrarias e telas. Não que a onda tenha terminado totalmente, mas com certeza arrefeceu. Ainda assim merece estudos que permitam um entendimento melhor das razões pelas quais surgiu e se estabeleceu. Aliás, sei que já existem alguns bem bons, como uma das duas dissertações de mestrado – tem esse título em Letras e também em Artes Cênicas – do meu amigo Gilberto Fonseca, que é escritor, professor e diretor teatral. Escrita ainda em 2015, tem o título “Leituras e Leitores da Série em Quadrinhos The Walking Dead”, a que deu origem a uma série dramática na televisão, dirigida por Frank Darabont, que levou o mesmo nome.

Um zumbi nada mais é do que um corpo desabitado, uma espécie de subcategoria de humanos sem alma que por isso estão, de certa forma, simultaneamente vivos e mortos. Seu aspecto orgânico está operando de modo parcial, posto que se movem, mesmo com certa dificuldade, e aparentam ter sentidos como audição e olfato. Com eles localizam as suas “vítimas”, que são os ainda plenamente vivos. Essas criaturas são movidas pelo apetite, o que não é muito explicável, uma vez que é de se supor que seu sistema digestório não esteja mais funcionando. E essa ânsia é apenas por carne humana. Nunca vi, por exemplo, um zumbi que comesse churrasco e muito menos que fosse vegetariano.

Nas histórias, a pessoa que é apanhada por uma dessas criaturas termina por tornar-se também ela própria um novo zumbi. Algo assim como com os vampiros: quem fica sem sangue tem seus caninos de imediato “vitaminados” e passa a precisar repor os litros que perdeu, além de ter que fugir da luz do sol, crucifixos, alho e estacas de madeira. Como não fui apanhado pela onda zumbinista, desconheço que esses tenham algum objeto, alimento ou clima com os quais se preocupar. Mesmo assim, fui agora tomado por uma súbita necessidade de conhecer melhor o que os move. Vai saber se isso não me será algum dia uma informação importante, até para minha sobrevivência. Do modo como o mundo real e o mundo literário estão se confundido, ultimamente, se torna recomendável estarmos preparados para tudo.

Notei, por exemplo, que os zumbis ficam numa espécie de torpor. Não se movem nem atacam sem que sejam despertados pela proximidade de comida. Mas vá um humano vivo passar por perto, que eles sentem seu cheiro ou ouvem algum som, ficando prontos para novo ataque. Também desconheço se existe algum perfume que os possa afastar, assim como a citronela faz com mosquitos. Ou se eles fugiriam de algum estilo musical: vá que sejam roqueiros, mas odeiem o sertanejo, por exemplo – nesse caso até me identificaria um pouco com eles. Mas não deve ser mesmo nada fácil ter apenas funções reflexas e vegetativas, ter perdido gosto pelas artes, a natureza, o humor e o sexo. Esse último é evidente, pois passaram a se reproduzir de outra forma.

Agora, falando sério, se isso for possível: no mínimo se pode pensar um pouco na transcendência do que seja ser humano, quando se fica atento às histórias. O que nos torna melhores? Eles em tese não possuem alma, como já escrevi antes. Mas todos nós, se formos vistos como um organismo biológico ativo, também estamos sendo apenas locatários de um espaço para ocupação temporária de um espírito. E, considerando a nossa essência espiritual, somos apenas locadores de um corpo que nos serve de forma transitória. Mesmo assim, vez por outra, muitos de nós terminamos enfrentando um vazio existencial, que pode nos tornar quase zumbis – a diferença seria não virarmos também canibais.

Não seriam zumbis os que vagam sem perspectiva de vida ou sequer uma opinião; aqueles que não se comovem com nada; as pessoas que são incapazes de quaisquer manifestações de empatia? Quem não consegue nem por um instante manifestar alguma preocupação sincera que não seja consigo ou com os seus, tem mesmo uma alma? E não estou colocando aqui essas questões de nenhum ponto de vista místico ou religioso. Uso apenas a percepção de que não pode haver vida sem sentimento. E é isso que falta de fato para os protagonistas dessas histórias: eles buscam não apenas a carne, posto que mesmo apodrecida isso eles também a têm. Querem, mesmo que instintivamente, a humanidade que não possuem mais e da qual sentem falta.

01.07.2021

O bônus musical de hoje é The Walking Dead Original Soundtrack, o tema da série The Walking Dead, produzido por Bear McCreary, de 2006.