MEU PATIFE PREDILETO
Durante minha infância eu tive um único bicho de estimação: foi um gato preto e branco chamado Patife. Minha mãe não gostava e não autorizava que se tivesse em casa isso que agora resolveram chamar de “pets”. E aquela exceção se deu muito mais porque ela sempre soube que fora a responsável pela chegada dele, ficando difícil depois dizer não para a permanência. Tinha aparecido lá em casa, choroso e faminto. Ela deu de comer e ele, que era muito esperto, resolveu tentar a sorte outras vezes em dias seguintes. Foi fazendo isso aos poucos e, por ser sempre bem recebido, se mudou de vez para o nosso pátio. Depois conquistou, com a mesma paciência, o direito a um local interno e mais quentinho, porque não era nada fácil morar na rua na fria Bom Jesus.
Uma ocasião ele estava deitado no tapete que existia bem na frente do nosso fogão à lenha, que servia tanto ou mais para aquecer a casa quanto cozinhar. No inverno a imensa cozinha era o lugar predileto de todos da família, inclusive dele. Foi quando explodiu a válvula de segurança da panela de pressão. Vi tudo de um canto privilegiado onde sempre brincava, rodeado também por meus livros. Ele deu um pulo inacreditável e saiu porta afora como um raio. No teto ficou grudado o guisado com cenoura que estava sendo preparado. E eu fiquei desconsolado pela ausência dele, que durou vários dias. Quando eu já estava quase acostumado com a tristeza, ele ressurgiu. Mas veio com todo o cuidado, como quando escolhera nossa família. Primeiro enfiou a cabeça por uma fresta para tentar conferir se tudo estava normal. Depois foi devagar assumindo outra vez o seu posto, não sei se vencido pela saudade, pela fome ou por ambos.
O Patife foi um grande companheiro e amigo. Ficou alguns anos com a gente até que, mais velho e descuidado, além de menos ágil, cruzou inadvertidamente o pátio do vizinho, como sempre fazia. Mas fez sem saber que dois cães de caça de familiares dele estavam hospedados lá. Foi pego e chegou muito ferido no território seguro que o acolhera. Foi necessário atendimento veterinário, mas não deu certo. Lembro da boa vontade do seu Abdon, que trabalhava no Fórum da cidade, se a minha memória não falha. Honrando seu nome, que em hebraico significa “aquele que serve”, muito amigo do meu pai, ele se dispunha a ir todos os dias na minha casa aplicar as injeções receitadas, na tentativa de salvar a vida do gato. Ele dava bom dia e o bicho sumia: tinha que ser procurado, embaixo das camas ou em qualquer buraco onde conseguia se esconder, com movimentos precários. Não durou muito mais. Foi minha primeira lição na vida sobre perdas. Tão dolorida que, talvez para amenizar, lembro de ter arquitetado um cuidadoso plano de vingança contra os assassinos, que nunca foi posto em prática, lógico.
Só voltei a ter um bicho em casa quando minha filha pediu. E ela fez comigo o que o Patife havia feito com a minha mãe: conquistou esse direito com método e persistência. Primeiro veio a Jujuba, uma hamster simpática, cor de caramelo, que pegava seus grãos direto da mão da gente, com a pontinha das unhas. Depois enchia as bochechas e levava tudo para esconder embaixo da serragem. Daí veio a Kakau, uma beagle que tentava cavar um buraco no pátio, talvez para ir conhecer de perto o que havia do outro lado do muro. Essa eu herdei, quando a Bibiana foi estudar fora. Adulta, era quieta – nunca latia – e obediente. Não cavou mais nada além de lugar no meu coração. Também adorava deitar num tapete, como meu gato da infância. Mas na frente da TV, na sala na qual convivia conosco, desde que se voltava do trabalho até a hora de ir dormir. Me despedir dela foi também muito doloroso. Na verdade, patifaria é o que os animais de estimação fazem com os sentimentos da gente.
27.08.2020
Bônus: música Negro Gato, do compositor Getúlio Cortes, na voz de Diego Moraes, gravação de 2010. Esta canção é uma versão de Three Cool Cats, da dupla Leiber & Stoler, um hit norte-americano. No Brasil, foi originalmente gravada por Renato e Seus Blue Caps, em 1964.