Em sua coluna no GZH de 23 de abril, Kelly Matos relata a dolorosa situação de duas mães de filhos autistas que, por ficarem mais tempo em casa em função da pandemia, estariam “incomodando” vizinhos pelo barulho que fazem. Num dos casos a pessoa do apartamento ao lado, sensível aos sons mas insensível ao que nos torna humanos, sugeriu que mãe e filho fossem para algum sítio distante. Algo como se fez no passado com quem tinha hanseníase, em Porto Alegre, empurrados para o Hospital Colônia de Itapuã. Os nazistas também fizeram isso na Alemanha, pouco antes de adotarem algo mais definitivo, que chamaram de “solução final”: o encaminhamento direto para a morte de quem tinha qualquer doença com pouca perspectiva de melhora, assim como deficientes mentais e físicos. Voltando ao relato da jornalista, a senhora incomodada chegou a imitar a criança, correndo e fazendo barulho como se também autista fosse. E a segunda mãe contou que já foi inclusive ameaçada de denúncia no Conselho Tutelar, certa ocasião. Evidente que o direito ao sossego das demais pessoas deve ser assegurado, mas a solução de situações como essas tem que passar por uma discussão social a respeito das formas de acolhimento. A responsabilidade não pode recair toda sobre os ombros das mães e não há culpa das crianças.

Ao ler isso, de imediato recordei de O Grito, uma telenovela da Rede Globo que foi ao ar entre o final de outubro de 1975 e abril de 1976. Ocupava o antigo horário das 22 horas. Esteve nessa faixa entre Gabriela e Saramandaia, outros dois sucessos da emissora. Seu autor foi o paulistano Jorge Andrade, que faleceu em 1984. Também dele a Globo levara ao ar Os Ossos do Barão, dois anos antes. Mas essa história marcou época por ser algo distante de uma trama romântica, sendo muito mais um trabalho experimental. Rendeu até uma tese de doutorado, defendida por Sabina Anzuategui, em 2012, com a qual ganhou o título de doutora em comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Um deputado paulistano chegou a protestar contra a novela no Congresso, pela crueza da história. A teledramaturgia centra tudo, neste caso, em garoto que também incomodava alguns vizinhos, devido à doença que tinha. Seguido se ouve falar que a arte imita a vida. Mas agora é a vida que está imitando a arte.

Em O Grito todo o tempo da narrativa equivale ao espaço de uma única semana. E as locações são quase claustrofóbicas, feitas em sua imensa maioria no local onde habitam os personagens. Conta a história de moradores de um prédio residencial, na cidade de São Paulo, com seus inúmeros conflitos. O edifício, que sofre forte desvalorização devido a uma obra pública nas proximidades, fora construído em terreno de família quatrocentona, com seus dois últimos remanescentes ainda ocupando a cobertura. Além do casal – Edgar e Mafalda -, vivido na época por Leonardo Villar e Maria Fernanda -, existiam vários moradores, todos acima de quaisquer suspeitas e todos, sem exceção, com segredos que temiam ver expostos: Agenor, um executivo; o arquiteto Rogério; a aeromoça Midori; o professor universitário Gilberto; o médico Orlando; a secretária Kátia; e a estudante Estela. Havia ainda o síndico e o zelador, além de um delegado de polícia, de tocaia nas proximidades, para identificar um contrabandista que acreditava residir no prédio. Mas centrais mesmo na história são a ex-freira Marta (Glória Menezes), que vive com seu filho Paulinho (Marcos Andreas), menino que tem limitações determinadas por doença mental e costuma, com relativa frequência, gritar nas madrugadas.

O conflito central se estabelece a partir de uma reunião de condomínio, dividindo moradores entre expulsar ou não mãe e filho do prédio. Paralelamente ocorre o desaparecimento de um interceptador telefônico, levando todos a crer que alguém esteja ouvindo e espionando os demais vizinhos. Este fato de certa forma se confirma quando surge uma carta, anônima e ameaçadora: “Conheço o segredo de todos! Ainda estão escondidos, mas poderão ser revelados! Cada um terá o seu preço.” O clima de desconfiança vai aumentando a intolerância, enquanto vão sendo mostradas aos telespectadores questões como traição matrimonial, vida dupla de morador que costuma se travestir, compulsão por compras, solidão, tentativa de suborno, ameaças e manipulações. Próximo do final ocorrem inclusive uma morte e um sequestro. Merece registro o elenco estelar que atuou na novela, que teve entre outros Walmor Chagas, Ney Latorraca, Rubens de Falco, Yoná Magalhães, Tereza Rachel, Elizabeth Savalla, Marcos Paulo e Lídia Brondi.

Os gritos do menino doente assombravam os moradores, mas no fundo não tanto quanto as suas próprias culpas e seus fantasmas. Marta mesmo se questiona sobre a possibilidade da situação do filho ser decorrente dela ter abandonado a vida religiosa e casado. Como se Deus a tivesse castigado pela decisão do passado. Outra moradora era sobrevivente do incêndio do Edifício Joelma, costumando ter pesadelos tão terríveis quanto os gritos. Na verdade, da cobertura ao térreo, cada um tem algum delito ou “imperfeição” que deseja escondida. A do garoto é explícita, o que talvez seja a razão do incômodo dos demais. Agora um “spoiler“, que pode ser dado porque a Globo não pretende reapresentar a novela: o menino morre durante a realização de uma segunda reunião de condomínio, convocada justamente para que votassem pela expulsão ou não. Ao velório todos comparecem e vão recordando seus traumas pessoais, enquanto o padre faz o sermão. O corpo é cremado e a mãe espalha as cinzas por todos os lugares anteriores dos quais já tinham sido obrigados a sair. Mas na última cena se ouve um novo grito, que ecoa pela cidade. Porque continuam existindo traumas humanos na metrópole, que seguem gritando, externando o desejo de solução, mesmo que improvável.

28.04.2020

Abaixo, um “link bônus” que dá acesso a outro grito. Esse em tela.

http://www.sabercultural.com/template/obrasCelebres/O-Grito-Edvard-Munch.html

9 Comentários

  1. Procurando na coluna de GZH encontrei neste Blog o relato da situação dolorida vivida pelas duas mães de filhos autistas. É inacreditável que ainda hoje possamos deparar com tamanha intolerância por parte deste coletivo (vizinhança), que, em vez de amparar a família, dar apoio, resgatar valores, destruir falsos conceito e preconceitos existentes em torno da criança especial, tenha usado da sugestão mais degradante para uma mãe, o afastamento do filho de seu próprio lar.
    Lamentável!

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  2. Bem, primeiramente parabéns pela sua bela memória, lembrar com tantos detalhes de uma novela de 1975, não é pra qualquer um. Lembro da novela, mas com 14 anos, evidente que não tinha noção do enredo! Conheço 1 amigo bastante próximo que tem filho autista e também conheço muitos relatos de quanto a família tem que se doar/dedicar a este familiar. Não é nada fácil para quem tem instrução e boa condição financeira. Imginem só, aquelas famílias que precisam trabalhar quase 18 horas por dia e ainda tem o dever de tentar dar o melhor ao filho ou familiar autista ou que tenha qualquer outra PCD. É um assunto bem complexo e delicado, assim como é evidente a falta de sensibilidade e paciência da maioria das pessoas que habitam este planeta. Triste é saber que este relato da Kelly Matos, é o reflexo de muitas situações semelhantes que quase não vemos em noticiários, mas sabemos que lamentavelmente, existem em muitos lugares deste mundo! Acho que é um assunto que deveria ser matéria obrigatória, desde o primeiro ano do primeiro grau! Parabéns pelo blog e seus questionamentos, amigo Solon! OBS: Não vi a novela O GRITO, mas tenho a trilha sonora em vinil. Abraços!

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