SOBRE ANTIGOS MEDICAMENTOS
Acho que eu era o único menino que, na infância, gostava do sabor da Emulsão Scott. Todos os meus amigos detestavam. Mas essa era uma panaceia e não existia uma única mãe que não acreditasse que todos nós, o consumindo regularmente, cresceríamos com ossos fortes e “vendendo saúde”. Expressão que, convenhamos, não quer dizer nada, uma vez que isso nunca pode ser comercializado de fato. A questão é que o produto tinha um gosto e um cheiro de peixe, ambos muito fortes. Não por acaso ele também era conhecido pelo nome genérico de “óleo de fígado de bacalhau”. Só que eu sempre gostei de peixe e não via problema nenhum em fazer de conta que estava comendo. Até porque sua participação na nossa dieta era mesmo muito rara. Rico em algumas vitaminas e especialmente em ácidos graxos e minerais, hoje é possível afirmar que deveria mesmo fazer bem. Segue disponível, mas os laboratórios conseguiram piorar a já difícil aceitação, oferecendo opções com sabores de laranja e morango. Destes, aposto que nem mesmo eu gostaria.
A Emulsão Scott está quase completando dois séculos de história. Ela começou a ser produzida em 1830, em um pequeno laboratório que fora aberto por John Smith. A empresa acabou incorporada pela Mahlon Kline, 45 anos depois. Com isso se transformou num atacadista enorme de farmácias na Filadélfia, EUA. E virou depois a Smithkline Beecham. Feito esse passeio no tempo e no espaço, de volta para Bom Jesus e Caxias do Sul, cidades onde morei, na época, chegou a vez do Biotônico Fontoura ocupar o imaginário das preocupadas progenitoras. Talvez porque esse, que era nacional, teve um período de intensa publicidade, apesar da fórmula já existir desde 1910. Naquele ano, fora inventada pelo farmacêutico Cândido Fontoura. O “fortificante” visava um assunto doméstico, uma vez que sua esposa tinha saúde precária. Mas, por que não aproveitar isso também para ganhar algum dinheiro? Ainda está nas prateleiras até hoje, com uma única mudança significativa na formulação original: até 2001 ele continha 9,5% de álcool, muito mais do que cervejas – aquelas consideradas de alto teor têm acima de 6%. Como esse produto há muito visava um público infantil, a Anvisa finalmente achou por bem exigir sua retirada. O que, convenhamos, demorou muito para fazer.
Como estamos falando de medicamentos, lembrei de outro muito marcante. Dois anos mais jovem que o Biotônico é a Minancora, que existe desde 1912. Era a milagrosa da pele, tratando desde frieiras e espinhas até picadas de insetos. Também costumavam aplicar como cicatrizante e nossas tias juravam que ela clareava a pele, com o uso constante. Não sei se isso acontecia mesmo e nem imagino que fosse necessário, no caso delas, considerando a cor natural que tinham. Com a herança genética de antepassados europeus, algumas davam a impressão de correr risco de queimadura solar até mesmo à noite. Branca e pastosa, no teatro amador muitas vezes na adolescência usamos a pomada para dar ar fantasmagórico ao rosto de alguns personagens. Interessante é que a embalagem dela rivalizava e segue rivalizando com a da Maizena, de uso culinário, no quesito persistência: ambas centenárias e quase sem qualquer alteração de fato relevante.
Como esse texto foi iniciado com base em memórias gustativa e olfativa, destaco outro tipo de lembrança: a publicidade de um remédio, que se via na televisão. Interessante é que ela era ambígua de propósito. E quase posso apostar que todas essas mães que citei no começo ficariam rubras se tivessem que responder pergunta de algum filho sobre para que aquilo serviria. Era o Regulador Xavier, registrado no Brasil em 1930. Ele era apresentado como um “santo remédio”, mas não citavam o milagre que fazia, na certa entendido apenas pelo seu público alvo. A bula de hoje deve ser quase idêntica às primeiras que teve, não precisando ser tão discreta quanto era aquele seu “reclame”. Revela que a indicação é para “cólicas menstruais, ausência ou atraso de menstruação, fluxo diminuído ou irregular”.
Bons tempos nos quais males eram prevenidos com fortificantes ou enfrentados com pomadas e reguladores. Nem videntes poderiam prever coisas como essa pandemia, a estupidez do kit preventivo contra a Covid e a demora da solução real, que é a vacina.
16.04.2021

(ainda com o “de”)
O bônus de hoje não é musical. Trata-se de um esquete humorístico do grupo Parafernalha, com Silvio Matos (paciente) e Lucas Salles (farmacêutico). O texto mostra o esforço de um senhor com problemas de memória para comprar um medicamento, assim como aquilo que o atendente tem que fazer para realizar a venda correta.