O MÉDICO E O MONSTRO
Um livro publicado no início de 1886, escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson e que foi “classificado” como sendo uma novela gótica, repleta de elementos de terror e ficção científica, atingiu sucesso praticamente instantâneo e é conhecido no mundo todo. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que no Brasil teve seu título simplificado para O Médico e o Monstro, foi considerado algum tempo atrás pelo mestre da literatura de suspense, Stephen King, como um dos maiores clássicos do gênero, ao lado de Frankenstein e de Drácula. Na história, que se passa em Londres, um advogado investiga estranhas coincidências que vão aos poucos ligando um médico amigo seu, Dr. Henry Jekyll, com um monstruoso psicopata identificado como Edward Hyde.
Essa obra literária abordou, na realidade, o fenômeno das múltiplas personalidades. A possibilidade de “habitarem” no mesmo corpo pelo menos duas facetas totalmente distintas, no que se refere à moralidade e à conduta, que afloram dependendo da ocasião e do interesse. Convém destacar que nem todos os profissionais da área concordam que isso de fato exista. Muitos preferem dizer que ocorre é um distúrbio que leva o indivíduo a ter comportamentos distintos, opostos mesmo, sendo uma única personalidade doentia. Em geral, devido à vida em sociedade, a face “demoníaca” tende a ser no mínimo mantida em segredo, escondida como uma perigosa vida paralela, havendo manipulação. Isso pode vir a se tornar uma bomba relógio, pronta para explodir a qualquer momento.
Essa semana foram presos, no Rio de Janeiro, o médico e vereador Jairo Souza Santos Jr., conhecido como Dr. Jairinho, e sua atual companheira, Monique Medeiros. São acusados, após investigação policial, que resultou em robusta prova documental e testemunhal, pela morte de Henry Borel, um menino de quatro anos filho dela com seu ex-marido. O crime ocorrera cerca de 30 dias antes, com requintes de crueldade. A perícia aponta que a criança foi torturada e depois espancada, o que causou uma série de lesões na cabeça e em órgãos, resultando em hemorragia interna. Levada a um hospital, chegou sem vida, com explicações como mal súbito e até mesmo uma singela queda da cama – que para ser plausível, deveria estar suspensa uns três andares acima do chão. Constatada a morte, o padrasto fez de tudo para obter uma certidão de óbito e liberação do corpo sem encaminhamento para o Instituto Médico Legal (IML). Mas não teve sucesso, mesmo com as inúmeras ligações feitas, inclusive para o governador do estado.
Jairinho é filho único de Jairo Souza Santos, o Coronel Jairo, que foi policial militar e coordenador de campanhas eleitorais de Flávio Bolsonaro. Investigado pela Operação Furna da Onça e com enorme poder de influência dentro do Detran daquele estado, chegou a ser preso por envolvimento numa série de crimes, sendo líder de milícia que estava sendo investigada pela socióloga e vereadora Marielle Franco, quando foi assassinada. Da área de influência do pai saíram quase a totalidade dos votos que conduziram o filho para a Câmara de Vereadores. No Legislativo, Júnior foi líder do governo em duas oportunidades, tendo ainda presidido as comissões de Educação e do Plano Diretor. Quatro dias após o assassinato de Henry, Jairinho foi empossado no Conselho de Ética da Câmara.
O menino morto tinha o mesmo nome do personagem “sadio” do livro de Stevenson. Mas não condições de lutar contra o psicopata, ao contrário do ocorrido na literatura. Teve ainda o azar de vir ao mundo via útero de uma mulher que, mesmo sabendo da tortura e do espancamento, sempre ocultou tudo e defendeu o criminoso. Talvez por dividir com ele a mesma doentia falta de empatia, de sentimento de culpa, de remorso. Ela trabalhava no Tribunal de Contas do Município, tendo conseguido a vaga por indicação de Jairinho. Ganhava pouco mais de R$ 14 mil brutos a cada mês, mas esse valor e o status pareciam ter mais importância do que a vida do filho. Ao sair do enterro do garoto, foi direto ao cabelereiro e fazer as unhas. Quando compareceu à delegacia pela primeira vez, recolheu as pernas sobre uma cadeira na sala de espera e caprichou na aparência, para fazer uma selfie. Presa, não esboçou qualquer reação, mas demorou um pouco para ser conduzida porque pediu para escolher a roupa certa.
Estão na internet para quem quiser ver cópias dos “santinhos” impressos por Jairinho, na última campanha. Em todos está escrito “Defensor da família. Contra a ideologia de gênero. A favor da Escola Sem Partido. Fechado com Bolsonaro”. Também se encontram vídeos com pastores evangélicos sugerindo votação nele, um “homem de bem”. Aliás, tanto o vereador como Monique são “tementes a Deus”. Essa expressão é usada para identificar quem é muito religioso ou devotado a Deus, pessoas que expressam intenso respeito e obediência. Ou seja, algo incompatível com essa violência nada cristã, mas situação que mais uma vez aponta para a profunda ligação que existe hoje entre as milícias e as igrejas neopentecostais no Rio de Janeiro. Uma lástima, que deveria ser repudiada e combatida pelos verdadeiros fiéis. Lástima maior é que mais uma vida inocente foi perdida. E pedir por justiça, além de óbvio, sempre será muito pouco.
12.04.2021

No bônus musical de hoje, em respeito à dor do pai de Henry Borel, Leniel Borel, o talento de Eric Clapton. Esse músico inglês, que também perdeu um filho com quatro anos de idade – caiu da janela do 53º andar de um hotel em Nova Iorque –, compôs essa canção em sua homenagem: Tears in Heaven.