“/A esperança equilibrista /Sabe que o show de todo artista /Tem que continuar” E vai mesmo, só que com menos brilho. Aldir Blanc, autor destes e de tantos outros versos belíssimos, foi levado pelo Covid-19. Nós seguimos aqui, um tanto bêbados e ainda tentando nos equilibrar, esperançosos. Seguimos acompanhados de gravações de suas músicas, que nos auxiliam a encontrar ânimo em dose suficiente para continuarmos vivos. Contra ele, apesar da bravura e resistência, o vírus e suas consequências foram mais fortes. Ele, que aguentara censura ditatorial e tantos outros percalços, desta vez foi obrigado a ir compor em outras bandas.

Aldir Blanc nasceu na zona norte do Rio de Janeiro e teve problemas familiares na infância. Cresceu vascaíno fanático – chegou a escrever um livro sobre o clube – e sempre ligado à música, mesmo durante os estudos, que seguiu até a diplomação como médico. Sua formação em psiquiatria e as experiências vivenciadas podem tê-lo auxiliado a entender como poucos a maneira toda própria do povo brasileiro. Ele navegava com desenvoltura entre nossa gente, entendia seus corações e mentes, sabendo traduzir tudo em letras repletas de significado, abrilhantando como poucos o cenário muito rico da música brasileira. Estabeleceu ao longo da carreira perto de cinco dezenas de parcerias produtivas, destacando João Bosco, Carlos Lira, Maurício Tapajós e Guinga. Isso rendeu mais de 600 canções, várias delas com sucesso comercial. Dois pra Lá, Dois pra Cá; O Mestre-sala dos Mares; Coração do Agreste; A Viagem; Amigo é Pra Essas Coisas; O Ronco da Cuíca; Bala com Bala; Resposta ao Tempo; e Kid Cavaquinho, entre outras. A parceria com João Bosco, a mais profícua de todas, rendeu muitos frutos – a fantástica Incompatibilidade de Gênios entre eles. Mas nenhum com o sabor de O Bêbado e a Equilibrista (1979).

Essa música foi elevada à categoria de hino, na fase final da ditadura militar. Se antes a juventude cantava Prá Não Dizer Que Não Falei das Flores (Geraldo Vandré, em 1968), agora essa nova fase pedia por vozes que clamassem pela anistia, que pedissem a volta de talentos exilados e uma retomada de mínima normalidade institucional. Mas sem esquecer o que já tinha ocorrido. Nesse cenário incerto – a corda-bamba –, o bêbado era toda a classe artística (Carlitos) e a intelectualidade, a própria sociedade brasileira, enquanto a equilibrista era sua esperança e a democracia, que por essas bandas latino-americanas sempre é frágil. Há quem afirme que o “mata-borrão do céu” era o setor conservador da igreja, que fazia vistas grossas a abusos, chupando “manchas torturadas”, escondendo o sangue de inocentes derramado.

O viaduto que cai – caiu mesmo – é o Engenheiro Freyssinet, que desmoronou sobre a Av. Paulo de Frontin e matou 48 pessoas, no Rio de Janeiro. Algo inesperado e rápido, como a chegada da noite em dias de mau tempo. Algo que se abatera sobre nosso país, matando muito mais gente do que aquele acidente. Gente assassinada em porões escuros como a noite, em sessões de tortura tão ao gosto de bestas humanas, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, gaúcho de Santa Maria. Ele e os seus são os causadores da “dor pungente”, que não haveria de ser sentida inutilmente. A sutileza está nos nomes Maria e Clarice, citados na letra, esposas do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, ambos “suicidados” em cenários grotescamente armados. O texto ainda cita o sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil. E segue deslizando disfarçadamente sua intenção, de tal forma que a pouca cultura dos censores jamais lhes permitiria entender, mesmo que tentassem fazer isso.

Aldir Blanc foi gravado inúmeras vezes por Elis Regina, que recebia dele músicas inéditas, em reconhecimento mútuo de talentos de compositor e intérprete. Mas também por Nana Caymmi, MPB4, Fafá de Belém e Roupa Nova. Nos últimos tempos, afastado da boemia, vivia quase recluso em apartamento no bairro da Tijuca – consequência também de acidente de trânsito que lhe deixou sequela em uma das pernas, dificultando movimentos. Mas gostava muito do convívio com familiares e dos longos telefonemas que costumava trocar com amigos. Seu escritório era território criativo, repleto de discos e de livros que ouvia e folheava com regularidade. Brancos estavam seus cabelos. Em branco não passou ele por essa vida.

05.05.2020

8 Comentários

  1. Muito bom o texto.
    Me fez saber o que significa “a tarde como um viaduto ” da letra da música “O bêbado e a equilibrista “.
    Ótimo.

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  2. Tua cronica me fez pensar em como escrever uma boa homenagem. Acho que deve ser exatamente como fizestes – algo que explica porque iremos sentir tanta saudades da pessoa.
    Amei escolha da versão cantada pela Zizi Possi!

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  3. Parabéns Solon. Tenho lido teus textos, todos excelentes . Gostoso de ler. São também, além de aula de história , críticos ao momento atual, com conhecimento e fina ironia.
    Abraço

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