SER JORNALISTA

Muitos e muitos anos atrás – nem me perguntem quantos, por favor – eu estava participando de um café da manhã com alguns colegas jornalistas e empresários da cidade em que eu morava. Ele acontecia em hotel de Porto Alegre, com o deslocamento sendo feito para participação em evento da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul. No mesmo local, por absoluto acaso, estava hospedada uma equipe profissional de voleibol feminino. Não lembro se tinha acontecido ou iria acontecer algum jogo na Capital Gaúcha. Mas eis que na mesa colada à minha se acomoda a jogadora Ana Paula Henkel. Fisicamente belíssima, ela chamou muito a atenção de todos que estavam no ambiente. Dela eu pouco sabia, exceto que defendia além do seu clube também a Seleção Brasileira, com um sucesso relativo. Como atacante, ganhou medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta. Também atuou no vôlei de praia, mais tarde.

Agora, tanto tempo depois, a tenho como “colega”. Atua na Jovem Pan como comentarista política, mesmo não tendo passado sequer por perto de uma faculdade de Jornalismo ou ter estudado Ciência Política. Pois ela, após o debate realizado pela Bandeirantes no domingo passado, com seis dos presidenciáveis, viralizou nas redes sociais por duas atitudes suas. Não por serem surpreendentes, mas como confirmatórias. Primeiro porque, em virtude do incidente entre Bolsonaro e a (essa sim) competentíssima jornalista Vera Magalhães, foi a indicada pela tropa para lançar o esperado contra-ataque. E o fez sem pudor algum, colocando no ar uma fake news contra a profissional que, entre outras tantas atividades, é âncora do programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura. 

No primeiro vídeo que fez questão de divulgar, Ana Paula assegura que uma das pessoas escaladas para mediar o debate que acontecera na véspera deixou escapar que a pergunta feita por Vera e que irritou Jair Bolsonaro fora proposital, para provocar o atual presidente. Isso não aconteceu na verdade. Não existiu esse comentário e nem tão pouco Vera teria se prestado a fazer isso. O que ocorreu é que fizeram uma edição, mostrando uma fala de Simone Tebet, que se solidarizou com a jornalista agredida logo após o fato. Então a funcionária da Jovem Pan questionou se aquilo era forma de fazer jornalismo. Manifestação, aliás, que foi aprovada por seu colega Augusto Nunes, uma nulidade que anos atrás buscou aniquilar a capacidade pensante dos profissionais da Zero Hora, em período que esteve aqui na RBS. Em tempo: a mesma Ana Paula Henkel fez campanha contra a vacinação; se mostrou homofóbica em mais de uma oportunidade; defendeu o armamento da população; disse que Trump é um exemplo da melhor política; se declarou contrária ao SUS; e foi ponta de lança de várias fake news espalhadas no interesse bolsonarista; entre outras barbaridades.

O segundo vídeo, esse obviamente não tornado público por Ana Paula, mostra seu total despreparo para ser uma comentarista respeitável. Ela se referiu à morte do ex-líder soviético Mikhail Gorbachev, no programa “Os Pingos nos Ís” com a seguinte pérola: “O muro de Berlim não caiu porque foi um muro velho, como cai um celeiro. Ele foi derrubado por homens firmes, homens bravos, de coragem. Mulheres também, como a primeira-ministra americana Margaret Thatcher”. Os EUA não possuem primeiros-ministros e Washington fica 5.894 quilômetros distante de Londres, dois países distintos, em dois continentes diferentes. Outra coisa que ela desconhece – mas daí já seria pedir demais – é que um dos “homens corajosos” foi justamente Mikhail Gorbachev, se vamos nos ater à visão ocidental sobre aquele fato histórico. Ele foi líder da antiga União Soviética entre 1985 e 1991, primeiro como secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista e depois como presidente. E, ao lançar as reformas para alcançar a “glasnost” (transparência) e também a “perestroika” (reestruturação), deu os passos iniciais para a dissolução da URSS. Pelo que, certamente, a Europa ficou muito agradecida e os norte-americanos também. Os russos, nem todos.

Mas, por que eu estou perdendo também tempo com essa ex-atleta? Porque é uma oportunidade ímpar para que se demonstre o quanto faz falta um diploma universitário, na formação de jornalistas. Claro que tem gente que se forma e não demonstra depois a qualidade esperada. Evidente também que há pessoas que, mesmo sem o diploma, se tornam bons profissionais. Só que esses dois exemplos tendem a ser exceções e jamais serão a regra. Porque as universidades, além de propiciarem a troca direta de experiências entre alunos e professores – e o fundamental convívio –, despertam interesses e aprofundam a capacidade crítica, de observação, de análise, de síntese. É durante esse tempo que somos levados ao amor incondicional à verdade, ao respeito absoluto ao nosso público e entendemos a relevância da postura ética.

Há ainda os aspectos técnicos, com o preparo para o uso mais adequado das ferramentas que se tem à disposição. Mas eu reputo que nada é mais relevante do que o conhecimento de humanidades. De fato, acho ser impossível um bom jornalista não ter amor à leitura e buscar o maior domínio possível do seu idioma e de preferência de outros. Deixar de estudar sociologia, filosofia, antropologia e psicologia, pelo menos nas suas noções mais básicas. Não pode um bom jornalista ser alheio aos ensinamentos da história e da geografia. E, por fim, na formação ideal ele se afasta das facilidades internéticas de hoje e mergulha no contato com gente. Tem que fazer amizade com pessoas de todas as classes sociais, tem que gostar de fato da diversidade e toda manifestação cultural. Tem que amar a profissão, tem que se insurgir contra qualquer injustiça e se colocar sempre à disposição na boa luta das causas sociais. Enfim, precisa ser como um excelente líbero no jogo de vôlei, aparando ataques dos adversários e preparando as condições para que as coisas fiquem melhores, logo depois. Viu, Ana Paula?

03.09.2022

Charge do paulista Jota Camelo, sobre perseguição ao jornalista Julian Assange

O bônus de hoje é Notícias do Brasil, de Milton Nascimento e Fernando Brant.

ESQUERDA, VOLVER

Em entrevista concedida em março deste ano, o presidente Joe Biden admitiu que chamava a América Latina de “quintal dos Estados Unidos”, durante seu tempo na universidade. Agora em junho, em função da Cúpula das Américas, acabou fazendo uma pequena correção e tratou de assegurar que somos o “terreno de entrada”. Ou seja, mudamos dos fundos para a frente, ficando agora como um local de passagem, para ser pisoteado. Isso que para todos nós foi mais interessante a sua eleição do que ser reconduzido o fascista do Trump. Entretanto, coisas como essa apenas demonstram que a única diferença entre democratas e republicanos, para seus “irmãos do sul”, é que os primeiros usam vaselina.

Mas, algo está mudando nos últimos tempos. E esse jardim do Biden e dos seus arrogantes conterrâneos está ficando repleto de rosas, todas vermelhas. Verdade que pelo menos uma delas já está nele há muito tempo, sendo um doloroso espinho a lembrar a surra que o gigante da bandeira estrelada levou da anãzinha corajosa. Falo de Cuba. Também a rosa Nicarágua incomoda muito e é relativamente mais antiga, assim como a Venezuela. Essa terceira os jardineiros passaram a respeitar mais, subitamente, depois de iniciada a Guerra da Ucrânia. Ela sumiu do noticiário que colocava lupa diária nos problemas locais, uma vez que o petróleo que oferta no mercado ganhou importância lá na parte alta do mapa. Esqueceram até de chamar Juan Guaidó de presidente, cargo para o qual ele jamais foi eleito.

Eleitos foram outros, avermelhando o jardim. Em 2019, quem abriu essa porta foi Alberto Fernández, ao vencer Maurício Macri, que buscava sua reeleição, com a esquerda então ocupando a Casa Rosada. Conseguiu isso ainda no primeiro turno das eleições na Argentina. Seguiu-se a tendência com o Peru: o professor da área rural, Pedro Castillo, venceu em junho Keiko Fujimori, filha do ex-presidente direitista Alberto Fujimori. Em dezembro ocorreu resultado semelhante no Chile, onde o deputado e ex-líder estudantil Gabriel Boric venceu o advogado José Antônio Kast. E também no final de 2021, Xiomara Castro chegou ao poder em Honduras.

Não se pode deixar de citar um caso que teve simbologia especial. Na Bolívia, um ano depois do esquerdista Evo Morales ter sofrido um golpe, o povo conseguiu pressionar por novas eleições, voltando às urnas no final de 2020 e devolvendo o controle do país para a esquerda. O eleito foi Luis Arce, do Movimento ao Socialismo, ainda no primeiro turno e com enorme repercussão regional. Naquele país, ex-ministros golpistas, como Luis Fernando López e Arturo Murillo, com ordens de prisão emitidas pelo Ministério Público após o novo pleito, fugiram para os EUA. O Brasil teria auxiliado, sendo rota de fuga para várias pessoas envolvidas na derrubada do presidente anterior, que fora eleito pelo voto popular.

A mais recente aquisição para o grupo foi a Colômbia, que pela primeira vez em sua história está colocando no poder um governo de esquerda. Foi no último domingo a vitória de Gustavo Petro sobre o candidato da extrema-direita Rodolfo Hernández, em um segundo turno bastante acirrado. Esse ineditismo, alcançado em uma sociedade extremamente conservadora e que sofre forte e direta influência dos EUA há décadas, comprova o fracasso da política neoliberal, que vinha conseguindo apenas aprofundar as desigualdades sociais naquele país e em todo o continente. Deste modo, são agora nove os países que se alinham numa tentativa de oferecer governos democráticos, voltados aos reais interesses da maioria da população. Todos eles com propostas que, reconhecidas suas peculiaridades locais, valorizam mais os programas sociais de combate à desigualdade, com geração de emprego e renda; o desenvolvimento sustentável; questões humanitárias; sua cultura; habitação e transporte; educação e saúde pública.

O “camisa dez” desse time deverá ser o Brasil, considerando que Lula está bastante à frente nas pesquisas eleitorais. Caso isso se confirme, outubro marcará o retorno do país ao período de real prosperidade vivido recentemente. E com a virada do ano haverá uma virada na vida da população. Ou uma “revirada”. Deve diminuir outra vez o número de famintos, que tem crescido; voltar a esperança do filho do porteiro do prédio chegar à faculdade; da classe C adquirir passagens aéreas; da gasolina deixar de ter seu preço alinhado ao dólar. As universidades públicas terão sua autonomia respeitada; as ilegalidades amazônicas serão enfrentadas; não haverá risco dos atendimentos via SUS passarem a ser cobrados; cessará a sanha privatizante, a tempo da Petrobrás e do Banco do Brasil serem salvos. A era da pós-verdade chegará ao fim, com combate efetivo ao disparo de fake news, sendo a justiça apoiada na punição dos responsáveis. A pesquisa será outra vez incentivada; a ciência terá respeito e, com isso, a terra plana novamente se tornará esférica e nenhum vacinado vai se transformar em jacaré. A era da pós-verdade chegará ao fim, com combate efetivo ao disparo de fake news. Outubro pode inclusive devolver aos brasileiros o direito de usar camisetas verde-amarelas com fins meramente esportivos, para quem sabe comemorar uma outra vitória, na Copa do Mundo que ocorre em novembro, no Qatar. Por fim, nossa bandeira voltará a ser de todos. E o Brasil não estará acima de tudo, mas ao lado de cada um de nós.

22.06.2022

Gustavo Petro, eleito domingo presidente da Colômbia, ao lado de sua vice Francia Márquez:
mulher negra, advogada e ativista ambiental

O bônus de hoje é o clipe com a música Sem Medo de Ser Feliz. Essa gravação foi feita com base na versão original do jingle de Hilton Acioli. E foi feito para presentear Lula, em surpresa preparada por sua esposa Janja. Dele participam vários músicos e artistas brasileiros.

DICA DE LEITURA

A ELITE DO ATRASO: da escravidão a Bolsonaro, de Jessé Souza

(272 páginas – R$ 22,84 – edição revista e ampliada)

Quem é a elite do atraso? Como pensa e age essa parcela da população que controla grande parte da riqueza do Brasil? Onde está a verdadeira e monumental corrupção, tanto ilegal quanto “legalizada”, que esfola tanto a classe média quanto as classes populares?

A elite do atraso se tornou um clássico contemporâneo da sociologia brasileira, um livro fundamental de Jessé Souza, o sociólogo que ousou colocar na berlinda as obras que eram consideradas essenciais para se entender o Brasil.

Por meio de uma linguagem fluente, irônica e ousada, Jessé apresenta uma nova visão sobre as causas da desigualdade que marca nosso país e reescreve a história da nossa sociedade. Mas não a do patrimonialismo, nossa suposta herança de corrupção trazida pelos portugueses, tese utilizada tanto à esquerda quanto à direita para explicar o Brasil. Muito menos a do brasileiro cordial, ambíguo e sentimental.

Sob uma perspectiva inédita, ele revela fatos cruciais sobre a vida nacional, demonstrando como funcionam as estruturas ocultas que movem as engrenagens do poder e de que maneira a elite do dinheiro exerce sua força invisível e manipula a sociedade – com o respaldo das narrativas da mídia, do judiciário e de seu combate seletivo à corrupção.

Basta clicar sobre a imagem da capa do livro, que está logo acima, para adquirir o seu exemplar. Caso isso seja feito usando esse link, o blog será comissionado.