POBREZA MENSTRUAL

Duas adolescentes moradoras do município de Imbé, no litoral do Rio Grande do Sul, conquistaram o segundo lugar no Prêmio Jovem da Água, em Estocolmo, Suécia, dias atrás. Laura Drebes e Camily Pereira concorreram com um produto que desenvolveram e que pode ser chave no enfrentamento do que tem sido chamado de “pobreza menstrual”. Conseguiram fabricar absorventes higiênicos a partir de subprodutos industriais, ao custo inacreditável de apenas R$ 0,02 a unidade. Em função disso, receberam o Prêmio de Excelência, pelo destaque entre outros 40 trabalhos de diversos países do mundo. Ambas são alunas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do RS, criado em 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O protótipo foi testado no laboratório do IFRS, que é coordenado pela engenheira Flávia Santos Twardowski Pinto. E o grande diferencial foi o uso de fibras de açaí de juçara e do pseudocaule da bananeira, em substituição ao algodão. Como esses vegetais são abundantes da região litorânea gaúcha, os custos caíram substancialmente. O segundo fator de sustentabilidade foi a substituição da camada plástica convencional por uma feita a partir de sobras de cápsulas de Ômega 3, descartadas pela indústria. Concorrer em evento que é realizado para destacar a utilização mais racional da água em nosso planeta se explica devido ao fato de que os atuais absorventes gastam 120 litros deste precioso líquido apenas na produção do algodão com os quais são confeccionados. O que pode ser evitado com a adoção dessa nova tecnologia. E ainda há a questão do descarte, que causa muito menor impacto ambiental devido ao “plástico ecológico” e menos agressivo ao meio ambiente.

O trabalho das duas adolescentes ganha mais destaque e importância, diante do grave problema da pobreza menstrual. O termo pode ser novo, mas a situação é bem antiga e se dá pela falta de condições para a realização da higiene adequada, devido à ausência de acesso a itens básicos, como absorventes. Também falta de informação e até mesmo de saneamento básico atingem as mulheres que se encontram em situação de pobreza e vulnerabilidade social, como moradoras de rua e aquelas em privação da sua liberdade, por exemplo. No caso de jovens pobres isso ainda é agravante na possibilidade de evasão escolar, que surge como mais um problema secundário. E estudos apontam essa situação inclusive como causa de transtornos que atingem a saúde mental. Explicando melhor, a pobreza menstrual é uma questão de ordem socioeconômica, infraestrutural e também de saúde pública, sendo por isso plausível se esperar dos poderes constituídos a merecida atenção.

Em função disso, foi proposto ainda em 2019 aqui no Brasil um projeto de lei que estabelecia que o SUS destinasse recursos para a distribuição gratuita de absorventes higiênicos, determinando com clareza o público alvo e utilizando ainda, além dos serviços de saúde, a rede escolar para fazer isso. A iniciativa foi da deputada federal Marília Arraes (PT-PE), que obteve apoio de suas colegas de diversos partidos, bem como de parlamentares homens. E a lei foi aprovada. Jair Bolsonaro a sancionou em 2021, com seis diferentes vetos feitos a partir de várias alegações distintas. Foi contra a distribuição gratuita, também discordou da lista de beneficiárias e afirmou não haver recursos suficientes. O Congresso reexaminou a matéria e, em março de 2022, derrubou os vetos e ainda incorporou ao texto a necessidade de dar preferência à aquisição daqueles feitos com materiais sustentáveis. Como no caso desse produto inovador e baratíssimo criado por Laura e Camily, em Imbé.

O prazo dado para que entrasse em vigência o serviço de distribuição era julho deste ano. Estamos em setembro e nada foi feito nesse sentido. O Senado, em função disso, está cobrando a imediata observância do que determina o texto legal, diante do silêncio do Executivo, que através dos seus ministérios da Saúde e da Educação segue desconhecendo a ordem. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) fez um levantamento e concluiu que existem no país cerca de 713 mil meninas vivendo sem possuir banheiro e chuveiro em casa. E que mais de quatro milhões não têm acesso a itens mínimos para seus necessários cuidados menstruais. Essas fazem uso de panos, jornais, papel higiênico e até miolo de pão. A consequência tem sido irritações, alergias e casos de infecções graves, que terminam impactando o sistema de saúde pública. Ou seja, a economia custa caro.

Também é necessário acrescentar que a menstruação ainda tem contra si tabus antigos – e alguns nem tanto –, como se pode encontrar até mesmo em obra do filósofo naturalista romano Plínio, que faleceu no ano 79 d.C. Em Naturalis ele afirmou que com o eventual contato com o “sangue impuro” das mulheres as plantas se tornavam estéreis, as sementes do pomar secavam e as frutas caíam das árvores. Em tempos bem mais recentes (1950) ainda se acreditava que tal sangue tinha conteúdo tóxico. Em muitas culturas esse momento era ou é tido como perigoso, por conceder poder às mulheres, uma indesejada autonomia senão em termos sociais pelo menos no que se refere à atividade sexual. Com o seu livro A Sangria Inútil, Elsimar Coutinho levou mulheres de camadas superiores no estrato social a desejarem a questionável supressão da menstruação, com o uso de métodos hormonais.

Mas, manter a população ignorante – especialmente a feminina – sobre aspectos relativos à saúde, à fisiologia e mesmo à sexualidade, se trata de uma forma eficaz de conceder poder para os médicos e a medicina. E para os homens em geral. Ou seja, se trata de uma opção proposital e interesseira. De controle mesmo. Desta forma, a pobreza menstrual resulta de um caldo cultural e financeiro. E a união do desrespeito com o preconceito, da falta de estrutura com a de educação. Sendo que o caso do nosso presidente é sui generis, pois ele também verte sangue. E mais de uma vez por mês, só que das mãos e das ideias.

23.09.2022

Os bônus de hoje têm Rita Lee, com Cor de Rosa Choque/Todas as Mulheres do Mundo. Logo depois uma canção com a também paulistana Bivolt, a primeira mulher a fazer parte do elenco de rappers da Som Livre. Ela apresenta música Dignidade Pra Fluir, que foi usada em campanha promovida pelos absorventes Carefree e Sempre Livre, fabricados pela Johnson & Johnson, sobre o tema da crônica de hoje.

Esse blog recomenda que seus leitores conheçam o site da Rede Estação Democracia. Acesso através do link abaixo.

https://red.org.br/

SER JORNALISTA

Muitos e muitos anos atrás – nem me perguntem quantos, por favor – eu estava participando de um café da manhã com alguns colegas jornalistas e empresários da cidade em que eu morava. Ele acontecia em hotel de Porto Alegre, com o deslocamento sendo feito para participação em evento da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul. No mesmo local, por absoluto acaso, estava hospedada uma equipe profissional de voleibol feminino. Não lembro se tinha acontecido ou iria acontecer algum jogo na Capital Gaúcha. Mas eis que na mesa colada à minha se acomoda a jogadora Ana Paula Henkel. Fisicamente belíssima, ela chamou muito a atenção de todos que estavam no ambiente. Dela eu pouco sabia, exceto que defendia além do seu clube também a Seleção Brasileira, com um sucesso relativo. Como atacante, ganhou medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta. Também atuou no vôlei de praia, mais tarde.

Agora, tanto tempo depois, a tenho como “colega”. Atua na Jovem Pan como comentarista política, mesmo não tendo passado sequer por perto de uma faculdade de Jornalismo ou ter estudado Ciência Política. Pois ela, após o debate realizado pela Bandeirantes no domingo passado, com seis dos presidenciáveis, viralizou nas redes sociais por duas atitudes suas. Não por serem surpreendentes, mas como confirmatórias. Primeiro porque, em virtude do incidente entre Bolsonaro e a (essa sim) competentíssima jornalista Vera Magalhães, foi a indicada pela tropa para lançar o esperado contra-ataque. E o fez sem pudor algum, colocando no ar uma fake news contra a profissional que, entre outras tantas atividades, é âncora do programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura. 

No primeiro vídeo que fez questão de divulgar, Ana Paula assegura que uma das pessoas escaladas para mediar o debate que acontecera na véspera deixou escapar que a pergunta feita por Vera e que irritou Jair Bolsonaro fora proposital, para provocar o atual presidente. Isso não aconteceu na verdade. Não existiu esse comentário e nem tão pouco Vera teria se prestado a fazer isso. O que ocorreu é que fizeram uma edição, mostrando uma fala de Simone Tebet, que se solidarizou com a jornalista agredida logo após o fato. Então a funcionária da Jovem Pan questionou se aquilo era forma de fazer jornalismo. Manifestação, aliás, que foi aprovada por seu colega Augusto Nunes, uma nulidade que anos atrás buscou aniquilar a capacidade pensante dos profissionais da Zero Hora, em período que esteve aqui na RBS. Em tempo: a mesma Ana Paula Henkel fez campanha contra a vacinação; se mostrou homofóbica em mais de uma oportunidade; defendeu o armamento da população; disse que Trump é um exemplo da melhor política; se declarou contrária ao SUS; e foi ponta de lança de várias fake news espalhadas no interesse bolsonarista; entre outras barbaridades.

O segundo vídeo, esse obviamente não tornado público por Ana Paula, mostra seu total despreparo para ser uma comentarista respeitável. Ela se referiu à morte do ex-líder soviético Mikhail Gorbachev, no programa “Os Pingos nos Ís” com a seguinte pérola: “O muro de Berlim não caiu porque foi um muro velho, como cai um celeiro. Ele foi derrubado por homens firmes, homens bravos, de coragem. Mulheres também, como a primeira-ministra americana Margaret Thatcher”. Os EUA não possuem primeiros-ministros e Washington fica 5.894 quilômetros distante de Londres, dois países distintos, em dois continentes diferentes. Outra coisa que ela desconhece – mas daí já seria pedir demais – é que um dos “homens corajosos” foi justamente Mikhail Gorbachev, se vamos nos ater à visão ocidental sobre aquele fato histórico. Ele foi líder da antiga União Soviética entre 1985 e 1991, primeiro como secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista e depois como presidente. E, ao lançar as reformas para alcançar a “glasnost” (transparência) e também a “perestroika” (reestruturação), deu os passos iniciais para a dissolução da URSS. Pelo que, certamente, a Europa ficou muito agradecida e os norte-americanos também. Os russos, nem todos.

Mas, por que eu estou perdendo também tempo com essa ex-atleta? Porque é uma oportunidade ímpar para que se demonstre o quanto faz falta um diploma universitário, na formação de jornalistas. Claro que tem gente que se forma e não demonstra depois a qualidade esperada. Evidente também que há pessoas que, mesmo sem o diploma, se tornam bons profissionais. Só que esses dois exemplos tendem a ser exceções e jamais serão a regra. Porque as universidades, além de propiciarem a troca direta de experiências entre alunos e professores – e o fundamental convívio –, despertam interesses e aprofundam a capacidade crítica, de observação, de análise, de síntese. É durante esse tempo que somos levados ao amor incondicional à verdade, ao respeito absoluto ao nosso público e entendemos a relevância da postura ética.

Há ainda os aspectos técnicos, com o preparo para o uso mais adequado das ferramentas que se tem à disposição. Mas eu reputo que nada é mais relevante do que o conhecimento de humanidades. De fato, acho ser impossível um bom jornalista não ter amor à leitura e buscar o maior domínio possível do seu idioma e de preferência de outros. Deixar de estudar sociologia, filosofia, antropologia e psicologia, pelo menos nas suas noções mais básicas. Não pode um bom jornalista ser alheio aos ensinamentos da história e da geografia. E, por fim, na formação ideal ele se afasta das facilidades internéticas de hoje e mergulha no contato com gente. Tem que fazer amizade com pessoas de todas as classes sociais, tem que gostar de fato da diversidade e toda manifestação cultural. Tem que amar a profissão, tem que se insurgir contra qualquer injustiça e se colocar sempre à disposição na boa luta das causas sociais. Enfim, precisa ser como um excelente líbero no jogo de vôlei, aparando ataques dos adversários e preparando as condições para que as coisas fiquem melhores, logo depois. Viu, Ana Paula?

03.09.2022

Charge do paulista Jota Camelo, sobre perseguição ao jornalista Julian Assange

O bônus de hoje é Notícias do Brasil, de Milton Nascimento e Fernando Brant.