TRAGÉDIA ANTES DO FOGO
É bastante provável que os 11 homens mortos no incêndio ocorrido na noite de quinta-feira, na cidade de Carazinho, na região noroeste do Rio Grande do Sul, tenham sido vitimados não apenas pelas chamas que tomaram conta do local. O Centro de Reabilitação de Dependentes Químicos (Cetrat), existente no bairro Vila Rica, era um entre centenas que proliferaram nos últimos tempos em todo o país, a partir de uma decisão do governo Bolsonaro, ligados a igrejas pentecostais. Todas essas organizações têm recebido recursos vultosos, que são liberados pelo Ministério da Cidadania. Esse era coordenado pelo pastor Edilson Batista.
O que caracteriza todos esses centros é que adotam práticas baseadas na religião, como forma de tratamento, e raramente conta com apoio de profissionais especializados na área da saúde. Não há informações precisas sobre a presença de médicos e muito menos de psicólogos. Inclusive no dia seguinte à tragédia o Conselho de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) divulgou um comunicado tornando público que o centro de Carazinho sequer tinha cadastro ativo. Também revelou que inspeções realizadas pelo Sistema de Conselhos de Psicologia a comunidades desta lista revelaram graves violações de direitos. Constataram haver tratamento cruel, desumano e degradante, assim como indícios de tortura a pacientes.
Estão seguindo a antiga e superada lógica manicomial, com um modelo de internação que segrega e não respeita as individualidades. Essas “comunidades terapêuticas” têm se mostrado, em sua imensa maioria, conforme já foi amplamente comprovado nas referidas fiscalizações, em espaços de devoção religiosa, sem o estabelecimento de quaisquer planos de fato terapêuticos, que honrassem o nome que elas próprias se atribuem. Lhes faltam conhecimentos técnicos, científicos e éticos.
Em reportagem veiculada na televisão, a familiar de um dos pacientes mortos revelou que conseguira fazer uma única visita ao internado, em 90 dias. E basta se olhar para os escombros, aquilo que sobrou da estrutura física, para se perceber a precariedade. Uma casa velha, de madeira, que tinha apenas uma porta. Tipo prédio da Boate Kiss, impossibilitando evasão rápida, se necessário. E ela era mantida trancada, conforme relatou vizinho que foi o primeiro a chegar no local e que também foi quem acionou os bombeiros. Disse ele que foi preciso esforço para que ela fosse arrombada e um ou dois homens pudessem ser retirados do interior, já totalmente tomado pelas chamas. As janelas eram basculantes e muito pequenas, não permitindo fuga. E também precisa ser considerada a hipótese de que, pelo volume de drogas que é ministrado para que os pacientes “se acalmem”, esses talvez não estivessem em condições de empreender fuga.
Quem divulgou as informações iniciais sobre o número de mortos e o daqueles que conseguiram levar para atendimento hospitalar foi o secretário-geral da prefeitura, o tenente Fernando Costa. Isso mesmo: o cargo é ocupado por um militar. Dez morreram no local e um depois de ter sido encaminhado com vida. Dois seguiam internados neste final de semana, tendo um deles sido removido para Porto Alegre na busca de um atendimento específico. E somente dois, do total de 15 que estavam no local, conseguiram ser retirados sem ferimentos graves. Também apenas dois entre todos eram de Carazinho mesmo. Os demais vieram de outras localidades, com apoio financeiro dos municípios de origem, apesar de todo o aporte federal.
Orações, sem dúvida alguma, fazem muito bem. Mas não seria nada mal se a elas se associasse um atendimento de fato profissional, humano e inclusivo. O que não parece ser a preocupação principal. Transferindo, com a devida relativização, para o que aconteceu recentemente no MEC, onde os pastores que foram presos na noite anterior à tragédia ocorrida em Carazinho enchiam algibeiras para intermediar liberação de verbas, as preces parecem ser dirigidas a outro deus. Educação e saúde são secundárias, valendo muito mais a adoração ao “Bezerro de Ouro”. Gilmar Santos e Arilton Moura talvez ainda venham a ser responsabilizados por seus atos. Edilson Batista também será, por sua omissão?
26.06.2022

O bônus de hoje é a música Sufoco da Vida. Ela foi composta pelo grupo Harmonia Enlouquece, formado por usuários do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ). Seu trabalho chegou a fazer parte da trilha da novela Caminho das Índias, da Rede Globo.
DICAS DE LEITURA
HOLOCAUSTO BRASILEIRO: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, de Daniela Arbex (280 páginas – R$ 39,85)
Em reportagem consagrada, Daniela Arbex denuncia um dos maiores genocídios do Brasil, no hospital Colônia, em Minas Gerais
No Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido apenas por Colônia, ocorreu uma das maiores barbáries da história do Brasil. O centro recebia diariamente, além de pacientes com diagnóstico de doença mental, homossexuais, prostitutas, epiléticos, mães solteiras, meninas problemáticas, mulheres engravidadas pelos patrões, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento, mendigos, alcoólatras, melancólicos, tímidos e todo tipo de gente considerada fora dos padrões sociais.
Essas pessoas foram maltratadas e mortas com o consentimento do Estado, médicos, funcionários e sociedade. Apesar das denúncias feitas a partir da década de 1960, mais de 60 mil internos morreram e um número incontável de vidas foi marcado de maneira irreversível.
Daniela Arbex entrevistou ex-funcionários e sobreviventes para resgatar de maneira detalhada e emocionante as histórias de quem viveu de perto o horror perpetrado por uma instituição com um propósito de limpeza social comparável aos regimes mais abomináveis do século XX. Um relato essencial e um marco do jornalismo investigativo no país, relançado pela Intrínseca com novo projeto gráfico e posfácio inédito da autora.
A CRIAÇÃO DE DIAGNÓSTICOS NA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA, Rafaela Zorzanelli, Benilton Bezerra Jr. e Jurandir Freire Costa – organizadores (272 páginas – R$ 53,23)
Este livro é resultado do debate, crescente em todo o mundo, acerca dos manuais que definem os limites entre o normal e patológico no campo da psiquiatria. Trata-se, aqui, de ponderar, a partir de argumentos epistemológicos, socioculturais e epidemiológicos, os diversos processos em jogo na formulação de categorias e classificações que nomeiam mal-estares, formas de sofrimento, experiências de desconforto e de inadaptação em sociedades ocidentais liberais e urbanas como aquelas em que vivemos. Seu aporte crítico amplia o olhar sobre os processos correntes de medicalização de comportamentos cotidianos, antes experimentados como situações da vida às quais se deveria responder com temperança e não com medicamentos.
Os textos aqui reunidos assinados por reconhecidos especialistas em saúde mental , além de abordarem lucidamente esses processos, também se inserem nos debates sobre a utilidade das classificações em psiquiatria para a nomeação de experiências de sofrimento, sobre a atribuição de sentido e de legitimidade às mesmas, e sobre o manejo de direitos no campo da saúde mental. Diante da evidente fartura de experiências de atipia, desajuste, desconforto ou mal-estar cada vez mais comuns no vocabulário partilhado transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, depressão, transtorno bipolar, fibromialgia, síndrome da fadiga crônica, bulimia, anorexia, entre outros , discutir as utilidades e as limitações dos critérios a partir dos quais se define o que é doença.
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