O meu irmão Sérgio me ensinou a jogar xadrez. Ele era dez anos mais velho do que eu, estava na faculdade de Direito, trabalhava. Eu era um menino quando ele chegou em casa com o tabuleiro e a caixa com as peças. Depois que eu compreendi os movimentos, começamos a ter partidas de verdade. Não sei quantas perdi para ele, em série, mas com certeza foram algumas dezenas. Ele não aliviava, não se deixava perder de propósito, talvez porque soubesse que eu perceberia e não iria gostar nada. Eu treinei muito, muito mesmo, até que tempos depois finalmente consegui vencer uma. E não foi uma vitória qualquer: foi “de lavagem”, daquelas incontestáveis. O aprendiz chegava ao nível do mestre. Fiquei orgulhoso demais com o meu feito e acho que ele ficou mais ainda.
O Sérgio era assim, daquelas pessoas raras que se preocupam com os outros sinceramente, que torcem pelo sucesso de todos. Foi um privilégio imenso ter convivido com ele, de quem aprendi não apenas coisas assim singelas, como um jogo de tabuleiro: me ensinou muito sobre a vida. E só não aprendi mais porque o aluno não tinha a mesma sensibilidade, percepção e inteligência do professor. Ele sempre foi melhor em tudo e admito isso sem nenhuma gota de raiva, inveja ou rancor. Trata-se apenas de um reconhecimento justo e necessário.
O jogo de xadrez surgiu por volta do Século VI, na Índia. Seu nome original era Shaturanga, uma palavra em sânscrito que teria a livre tradução de “os quatro elementos de um exército”. A razão é que todos os componentes do que seriam as forças armadas da época estavam representados no tabuleiro. Existiam infantaria (peões), cavalaria (cavalos), carroças e elefantes. Esses dois últimos elementos foram trocados, durante a Idade Média, pelas torres e bispos, respectivamente. Na mesma época foi também introduzida a figura da rainha, que veio a se tornar a mais poderosa entre todas.
Quando ocorreu essa mudança o jogo já tinha se difundido por boa parte do mundo. Primeiro ele foi levado para a China e para a Pérsia, atual Irã, através de rotas comerciais. Deste modo, com os árabes, a prática chegou até Espanha e Portugal, quando a região foi conquistada, de lá ganhando o restante da Europa. Algumas de suas regras também foram mudando, com o passar do tempo, mas não se alteram desde o término do Século XIV. Quanto ao nome hoje adotado, vem da palavra persa “shah”, que significa rei.
O maior incentivo mundial para a sua prática veio da União Soviética, formada logo depois da Revolução Russa, em 1917. O jogo foi incluído até mesmo em programas escolares, devido ao reconhecimento de ser excelente para o desenvolvimento da mente e do raciocínio. Não por acaso de lá vieram os maiores campeões de todos os tempos, como Mikhail Botvinnik, Boris Spassky, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, entre outros. Depois da Segunda Guerra Mundial, com sua retomada, os torneios internacionais foram todos dominados por eles, de 1946 até a década de 1990. A exceção ficou por conta da vitória de um prodígio norte-americano de nome Bobby Fischer, que venceu em 1972, no auge da Guerra Fria. Temperamental, ele não quis depois defender o título conquistado porque a International Chess Federation (FIDE) não aceitou atender todas as muitas exigências e condições que ele queria impor para jogar.
No Brasil, nosso maior destaque foi Henrique da Costa Mecking, que era conhecido como Mequinho. Foi um Grande Mestre, tendo alcançado a sua maior pontuação no ranking internacional em 1977. Naquele momento chegou a ser o terceiro melhor do mundo, ficando atrás apenas de dois prodígios russos: Anatoly Karpov e Viktor Korchnoi. Natural de Santa Cruz do Sul, ele foi campeão gaúcho, brasileiro – isso aos 13 anos de idade – e também sul-americano. No ano seguinte foi diagnosticado com uma rara doença autoimune que quase o levou à morte, tendo se afastado por muitos anos dos tabuleiros. Hoje tem 68 anos e vive longe dos holofotes. Mas ainda joga online, sem utilizar seu próprio nome. Em geral prefere o apelido Lorenzo, com o qual homenageia São Lourenço, seu protetor, e busca ficar um tanto incógnito. Coisa assim como eu sempre fui, mesmo tendo disputado alguns torneios em Porto Alegre, na adolescência.
03.07.2021

O bônus de hoje é a música Jogo de Xadrez, composição de Paulinho Nogueira, aqui cantada pelo autor. Paulista de nascimento, ganhava a vida como desenhista antes de seguir carreira musical, sendo autodidata. Fui um exímio violonista e compunha também músicas instrumentais, tendo alcançado fama fora do Brasil. Um bom exemplo é a sua Bachianinhas. Inventou a craviola e foi o primeiro mestre do consagrado Toquinho.
É um jogo magnífico. Deveria estar presente nas escolas.
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Com certeza, faria bem para os nossos estudantes.
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Como sempre, o Solon nos brinda com um texto magnífico, impregnado de sensibilidade e conhecimento. E a canja com Paulinho Nogueira é um raro achado.
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Obrigado, deputado, pelas palavras elogiosas e por acompanhar as publicações. Grande abraço!
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Ótimo texto, ótimo jogo! Quando aprendi a jogar fiquei viciada, jogava todos os dias.
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Sem dúvida, quando se adquire gosto pelo jogo dá vontade de usar o tabuleiro com boa frequência.
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muito bom.
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Também aprendi a jogar xadrez com ele e comungo da tua opinião a respeito da superioridade do mestre – sempre fui mediana, não conseguindo me aproximar da capacidade dele. Obrigada pelos teus textos, repletos de sensibilidade.
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Minha querida sobrinha! Bom saber que tens acompanhado meus textos. Quanto ao jogo, no nosso caso a sua importância maior foi permitir ainda mais momentos de convívio com quem nos ensinou com tanta dedicação e carinho. Aprendemos no mesmo tabuleiro, mas não sei onde ele foi parar, além de ter ficado na memória. Beijos!
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