Isabel Allende escreveu 25 livros entre 1982 e 2020, com romances, memórias e contos. Entre eles A Casa dos Espíritos, De Amor e de Sombra e As Mulheres de Minha Alma. Também é autora de quatro peças teatrais. Me permito destacar aqui um trecho de texto escrito por essa talentosa chilena, em livre tradução, para ilustrar com muito mais precisão e humor o árduo tema que me propus abordar hoje.
“Minha vida sexual começou cedo, por volta dos cinco anos, no jardim de infância das freiras ursulinas, em Santiago do Chile. Suponho que até então eu estava no limbo da inocência, mas não me lembro daquela era primitiva antes do sexo. Minha primeira experiência consistiu em engolir acidentalmente uma pequena boneca de plástico. “Ela vai crescer dentro de você, você vai ficar redonda e então um bebê vai nascer”, explicou minha melhor amiga, que acabara de ter um irmãozinho. Um filho! Era a última coisa que eu queria. Seguiram-se dias terríveis, tive febre, perdi o apetite, estava a vomitar. Minha amiga confirmou que os sintomas eram iguais aos de sua mãe. Finalmente, uma freira me forçou a confessar a verdade. “Estou grávida”, admiti soluçando. Fui pega por um braço e carregada no ar até o escritório da Madre Superiora. Assim começou meu horror pelas bonecas E minha curiosidade sobre aquele assunto misterioso cujo nome não era recomendável nem pronunciar: sexo.”
A ideia de ser oferecida educação sexual para crianças e adolescentes, nos currículos escolares, não é nova. Eu mesmo tive isso ainda quando estudava no Guarani, uma escola pública em Caxias do Sul, no final dos anos 1960. E podem acreditar que foi muito útil, porque nem todos nós tínhamos noções sobre o tema e os que possuíam alguma conseguiam, mesmo assim, ser extremamente desinformados quanto a detalhes bem importantes. Nunca esqueci da pergunta de um colega para a professora, querendo saber se o homem teria que fazer sexo todos os dias com a mulher grávida, até o nascimento do bebê. Talvez ele imaginasse que nós deveríamos fornecer material biológico do mesmo modo que material de construção para uma obra seguir adiante. Lembro também que ninguém riu, todo mundo temendo ser o próximo a “passar vergonha”.
O conservadorismo da sociedade brasileira tem feito com que se tenha uma espécie de oscilação pendular, com conquistas, retrocessos e novas lutas para se chegar outra vez a um ponto que já havia sido atingido. No que se refere à implantação de programas de educação sexual, isso é bastante nítido. Apesar de estudos e pesquisas feitas em diversos países já terem comprovado que alunos submetidos à orientação séria nessa área têm início de vida sexual mais tarde, não é isso que pensam e apregoam moralistas pouco instruídos. Esses juram que a teoria seria de imediato transformada em prática, desconhecendo que a consequência real é uma escolha mais apurada de parceiros, mais tardia e com menor risco de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e de gravidez precoce. Além disso, esse acesso é um direito assegurado a eles por lei. Consta no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais e ainda na Base Nacional Comum Curricular, apesar de todo o aparato legal da educação no Brasil estar sob ataque, no atual governo.
Os professores atuam apenas como catalisadores, nesse processo. Devem criar condições para um debate em sala e também para que o acesso à leitura fora dela aprofunde o conhecimento. Uma vez isso alcançado, novas conversas trazem à tona distorções eventuais, o que permite esclarecimento e maior tranquilidade. O bom é que isso se propaga, chegando não apenas aos namorados e namoradas, mas também a outros colegas e mesmo familiares dos estudantes. A ideia de que essa é uma obrigação dos pais está totalmente ultrapassada. E na verdade não houve ao longo do tempo o cumprimento desse papel a contento, mesmo ele sendo também relevante – muitas vezes por despreparo e dúvidas dos mais velhos, inclusive, além de dificuldades de diálogo e por falta de confiança. Mas é importante ressaltar que são funções diferentes, que podem ser complementares e não concorrentes: família e escola, pais e professores não competem, mas agregam abordagens diferentes tanto em forma quanto em conteúdo.
Os temas abordados na educação fundamental e no ensino médio não serão os mesmos, evidentemente. Assim como não são em nenhuma outra matéria: há escalas, um crescimento gradual. O que não se pode mais é acreditar que mesmo os pequenos, com acesso a recursos como a televisão e a internet, não saibam de nada. Nessa fase o melhor é cuidar para que não seja alimentado neles o preconceito e a informação distorcida que inclusive os torna mais vulneráveis a situações de violência. Para os maiores a discussão deve ser mais focada em outros temas, definidos pela demandas que surgem nessa idade; nos cuidados necessários para uma saúde física e psicológica; e, como dito antes, em responsabilidades e na prevenção das IST e nos riscos de uma gravidez precoce. Ou seja, ninguém vai ficar dizendo a eles que meninos vestem azul e meninas vestem rosa, mas também não estarão sendo apresentados a nenhum projeto de dissolução da família. Ao contrário, terão mais informações para fazer escolhas que favoreçam sua felicidade e relações mais seguras e harmoniosas.
24.04.2021

No bônus musical de hoje, o clip oficial de Garotos II – O outro lado, de Leoni.
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