Nos anos 1990 fui editor-chefe de um jornal diário no interior do Rio Grande do Sul. Com dezembro chegando ao fim, para cumprir uma pauta bem lugar comum, mas que agrada muitos leitores que se sabe ficam ávidos esperando pela matéria, determinei a um repórter que buscasse detalhes sobre o primeiro nascimento que ocorresse após a virada do ano na cidade. Com o feriado e as edições aglutinadas que se faz nessa época, a primeira iria circular apenas no dia 03 de janeiro. Ele elaborou o texto, mas quando nos preparávamos para enviar o jornal para o setor gráfico, veio a informação de que a criança falecera. Foi necessário providenciar uma troca, com a retirada do trabalho feito e a substituição por outro que não lembro qual foi. Mesmo assim, com o desejo de ao menos registrar aquela chegada e a partida inesperada, escrevi uma coluna sobre o fato e coloquei na página que mantinha sob minha responsabilidade direta. O título que dei foi o mesmo que uso aqui, hoje. E o que escrevi na ocasião, reproduzo abaixo.

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Se a virada do ano tem todo o simbolismo de ser oportunidade de recomeço, o que não dizer do nascer de uma criança? Nada mais humano, nada mais divino e expressivo. É a vida brotando da vida, nos dando contornos e características que são próprias de deuses. Nos ensinando que a existência é eterna porque se renova; que é sempre idêntica e paradoxalmente tão diversa.

Mal o relógio havia marcado meia-noite e, com os primeiros minutos de 1998, celebrava-se também, no Hospital Bruno Born, o nascimento de mais uma menina. A primeira lajeadense deste ano. O segundo fruto do ventre de Cristina Gonçalves, de 27 anos. Apressada, veio ao mundo prematura, com menos de sete meses de gestação, como que atraída pelas luzes e alegria daquela noite tão especial. E surpreendeu também seu pai, o pedreiro Antônio Gonçalves, por seu pequeno tamanho e enorme fragilidade.

Ficou na UTI Pediátrica, mas por pouco tempo. Os 34 centímetros de esperança e 800 gramas de sonho foram receita insuficiente para lhe garantir a existência física. E ontem ela fugiu de perto daqueles que já se preparavam para amá-la, retornando a outros convívios.

Nem chegou a ser uma criança. Foi ainda mais inocente do que isso: permaneceu sendo um anjo. Nem chegou a brincar, exceto com os sentimentos até de quem não a conheceu, mas apenas ficou sabendo da sua passagem.

Talvez sua intenção fosse apenas vir dar uma breve espiada neste mundo louco onde, inteligente, não poderia mesmo querer ficar. Melhor correr entre as nuvens; melhor o colo de Deus – só ele supera o das mães. Melhor a leveza do espírito, o sopro dos ventos, o som do silêncio, a imensidão…

Nem peço que se reze por ela. A menina sim pode nos proteger: com as preces de sua quase presença. Ela sim pode ser referência a mais para que se tenha mesmo um 1998 com real harmonia, amor e paz. Como ela já alcançou.

02.01.2021

O primeiro bônus musical desse ano também faz referência a uma criança, mas é otimista, com uma visão de futuro pleno de amor e leveza. Como se espera que aconteça com e para todos nós, agora em 2021. Ana Vilela canta Promete, em clip com os músicos Juliano Cortuah (percussão e violões), Fernando Lobo (baixo), Pedro Mamede (bateria), Rodrigo Tavares (teclados) e Jessé Sadoc (trompete).

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