Notícia dessa semana dá conta de que o Brasil terá um problema adicional para realizar a vacinação em massa de sua população, contra o coronavírus. Não bastassem a indefinição quanto à compra, com birra política sendo obstáculo para escolha de qual vacina usar; não bastasse o sério problema de armazenagem e transporte do produto, devido à falta de infraestrutura e por causa das dimensões continentais do país; tudo agravado por equipes técnicas em número insuficiente e sem o treinamento adequado; agora se fica sabendo que a indústria não está preparada para produzir seringas em número suficiente para as aplicações.
Essa situação desmascara dois mitos de uma só vez. O primeiro é que a iniciativa privada e seu “Deus Mercado” tudo preveem, tudo podem e tudo satisfazem, sendo o suprassumo da competência. Como assim, se ela não se deu conta de que havia uma imensa oportunidade de lucro na produção de seringas? O segundo é que os militares em geral têm uma inteligência privilegiada, são preparados e estratégicos, superiores a qualquer civil. Como assim, se o ministro da Saúde é um general da ativa e ele não se deu conta de que teria que agir antes, diante de uma óbvia necessidade, algo mais do que previsível?
Precisamos entender esses conceitos, antes de mais nada. Competência é uma capacidade adquirida, sendo ela resultado de conhecimentos e habilidades acumuladas, junto com uma experiência específica qualquer. É uma qualidade legítima e desejada de quem, seja pessoa física ou jurídica, tenha que realizar algo e precisa fazer isso bem feito. Ser competente é ser versado naquilo, ser idôneo, ter autoridade. Estratégia é a arte de coordenar ações, para aplicar com eficácia os recursos disponíveis, visando determinados resultados. Uma qualidade essencial em termos militares, mas não apenas neles. Vale o mesmo para questões políticas e econômicas; para a condução de algum conflito; para a disputa de qualquer jogo. Ser estratégico é pensar no que fazer e no que não fazer, como e quando. É estabelecer preparação de defesa e de ataque; de sobrevivência; é elaborar e executar estratagemas.
No mínimo desde março já se sabia que a situação era grave e que, não importando o quanto fossem demorar os esforços da ciência, só se sairia dessa posição delicada com a chegada de alguma vacina. Dez meses se passaram e agora, às vésperas da boa notícia tão esperada, se descobre que nossa classe empresarial não é tão empreendedora e que nossos militares não conhecem nem tabuleiro de xadrez, que dirá de geopolítica. Que show de empreendedorismo! Que show de visão militarista! Tudo investido, organizado, previsto, preparado. Vamos fazer uma festa para comemorar, todo mundo junto, bem pertinho e sem máscara. Álcool, só em alguma bebida para os brindes: nada de gel, que esse não se pode ingerir.
Claro que ainda restarão alternativas. Talvez seja possível comprar estoques de seringas e agulhas de importadores amigos, sem a devida licitação e com bom sobrepreço. Também se pode recorrer ao transporte militar, pagando adicionais polpudos para os abnegados oficiais que irão comandar a operação. Depois, se tudo der certo, se divulga e colhe os louros. Se tudo der errado, a culpa foi da oposição, da imprensa, da China, dos críticos, dos votos roubados do Trump, do STF. E se o atraso estiver causando 700 ou mais mortes a cada dia, serão apenas as perdas calculadas. Nada de chorar, seu país de maricas!
08.12.2020
Como o assunto central deste texto é saúde – mesmo sendo uma crítica ao descaso que estão tendo com a nossa –, a música bônus escolhida é Everybody Hurts, do grupo R.E.M. (esta apresentação foi em Londres). Ela é bastante conhecida também por ser usada como uma espécie de hino pelos Médicos Sem Fronteiras, uma organização humanitária internacional que merece todo nosso respeito e apoio.
Cirúrgico, Solon. 👏👏👏
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Obrigado, Marcelo!
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Republicou isso em REBLOGADOR.
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Agradeço pelo auxílio na divulgação. Abraço!
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Olá ,
Na França não é melhor, nós o problema é a massa administrativa, nosso estado é obeso, pesa muito e custa muito.
Os ingleses estão vacinando desde hoje e temos que esperar que os “raspadores de papel” validem, depois os obscuros escritórios nacionais de saúde darem luz verde … é assustador.
E, por fim, os bens, que são os únicos a produzir riquezas, serão os últimos vacinados no ano que vem.
Vejo pelo seu artigo que o caso brasileiro também é muito complexo, e que como o seu país é grande, isso não ajuda na campanha de vacinação …
Bom dia e coragem
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Le Brésil est vraiment très grand. Cependant, l’intelligence de notre gouvernement actuel est très limitée. Nous avons également une bureaucratie terrible et la population active sera au bout du fil. Bonjour et beaucoup de courage pour la France aussi.
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A vida nas mãos de inexperientes “soldados”, como disse Vinícius de Moraes, de uma pátria “tão pobrinha, de pés descalços”. O problema das seringas lembra, com efeito, a fábula “Assembleia dos Ratos”. Reunidos, os ratos e a ratazana-mor resolveram o problema que os amedrontava, a aparição súbita do gato junto à ninhada dos roedores. A solução de amarrar um guizo no pescoço do infame felino arrancou aplausos efusivos de todos na assembleia. Só então, veio-lhes a pergunta:
“Quem amarra o guizo no pescoço do Farofino?”
Silêncio geral. Faltou-lhes estratégia. A mesma prévia e planejada estratégia hoje em falta no que tange às seringas…
Mas digamos a canção tão oportuna:
“Se você tem certeza de que já teve o suficiente nesta vida… persista. Não desista de si mesmo, pois todo mundo chora.”
Grata, Solon, a ironia fina qualifica ainda mais o teu texto.
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Regina, hoje temos verdadeira praga de gatos e ratos, no Planalto. Estão aliados os que se apropriam e os que roem tudo. Até o cheiro está ficando insuportável. Mas ainda vamos resolver isso de algum modo. Por aqui, sigo agradecido pelo prestígio que tua leitura me concede. Abraço!
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Lamentável mesmo, concordo em grau, gênero e número! Aliás, faz décadas que este país tem governanres frouxos e incapazes. A cada ano que passa, mais a gente se decepciona com a maioria dos políticos brasileiros! Muito triste! Abraços!
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