Uma pequena cidade do interior tem sua rotina alterada e o pânico vai se instalando pouco a pouco, com o surgimento de uma misteriosa doença supostamente transmitida através do beijo. A disseminação acontece a partir de uma festa de adolescentes, onde ocorreu um “beijaço”. Esse é o ponto de partida da história contada na série Boca a Boca, que foi lançada na última sexta-feira, pela Netflix. O diretor é Esmir Filho, que tem todo um trabalho voltado para o universo adolescente, suas descobertas e sexualidade. Esta temática, que vem marcando sua trajetória, pode ser vista outra vez na série, mas com uma abordagem surpreendente.

Depois de A Vagabunda Mora ao Lado (2004), Ímpar Par (2005), Tapa na Pantera (2006) e Saliva (2007), quatro curtas, Esmir filmou o seu primeiro longa. Foi Os Famosos e o Duende da Morte, feito com atores amadores no Vale do Taquari, em 2009, com o qual ganhou o Festival do Rio. Nele lançou a lajeadense Tuane Eggers, então estudante do Curso de Comunicação da Univates, muito elogiada pela atuação. O segundo foi Alguma Coisa Assim, em 2016. No ano seguinte foi roteirista de Baleia e agora criou e dirige os quatro primeiros episódios desta série, que tem tudo para ser um novo sucesso. Além da história em si, ela mostra a beleza da cidade onde rodaram todas as cenas. Goiás Velho foi fundada em 1729, quando o Brasil vivia o auge do chamado ciclo do ouro, tendo sido capital do Estado de Goiás até 1937. Tem um acervo arquitetônico e histórico que merece ser visitado e conhecido.

Essa produção começou a ser tratada dois anos atrás. No entanto, por absoluta casualidade, tem uma estreita relação com o que estamos vivendo nos tempos atuais, em virtude da pandemia. Primeiro não sabem como ela surgiu, nem como se propaga. Depois há a generalização do medo, mesmo ele não impedindo as atitudes irresponsáveis que podem aumentar a contaminação. Se passa então para a busca de uma cura milagrosa. Mas, ao longo de todo o processo, vão se evidenciando as gritantes diferenciações sociais que antes estavam ocultas no microcosmo da ficcional cidade de Progresso, que se localiza em zona de economia pecuarista, mas repete aquilo que acontece nas nossas cidades reais e no país como um todo.

A ideia primordial era mostrar tudo o que ocorre num período de vida em que os jovens descobrem de fato seu corpo e testam seus próprios limites. Sexo e drogas são experiências das quais nenhum deles pretende fugir, numa sociedade repressora. A escola, com sua diretora que tenta controlar tudo e todos; os encontros religiosos, promovidos pelo pai de um dos alunos, são dois pontos autoexplicativos na trama. Preconceito e medo ficam lado a lado, potencializando um quadro claustrofóbico. Não vem ajuda de fora e ninguém sai da cidade, como se ela estivesse se autoimposto um lockdown.

Nesse território demarcado, debatem-se os três protagonistas da história. Alex (Caio Horowicz) é filho de um grande fazendeiro, que tem uma moral muito questionável. Para desgosto do pai, além de não se interessar pelos negócios, consegue ser vegano. Fran (Isa Moreira) é negra e filha de uma funcionária da fazenda, vivendo em colônia destina aos funcionários. Foi criada convivendo com Alex, mas a distância social é evidente. E Chico (Michel Joelsas) veio de cidade grande para viver com o pai, separado de sua mãe, justo para “fugir de más companhias”. Sintetiza o olhar estrangeiro sobre o mundo fechado de Progresso. Aliás, entre os jovens a localidade é ironicamente chamada de Retrocesso.

Esta primeira temporada tem seis episódios. Os dois últimos não são dirigidos pelo paulistano Esmir, mas pela campinense Juliana Rojas. Para fundamentar e dar realidade ao trabalho, foi pesquisada e discutida, durante a produção, o que quadros epidêmicos e até de contaminações radioativas causam sobre as populações atingidas. Constataram não haver exceções: sempre se encontra medo, preconceito e discriminação, inclusive com a evidência de “corpos privilegiados”, que recebem o devido tratamento em detrimento de outros. Impactante é a similaridade com a transmissão do Covid19, também pela boca, pela respiração, pela proximidade. E se fosse pelo beijo? Ao distanciamento social seria somado um distanciamento afetivo? Quem for assistir, não espere nada leve. Em alguns momentos chega a ser desagradável. Mas o objetivo nunca foi deixar ninguém em zona de conforto. A realidade também costuma ser difícil.

20.07.2020

Trailer de Boca a Boca, série brasileira disponível na Netflix.

2 Comentários

  1. Não assisti ainda,mas pelo treiler já vi que não é nada leve. Geralmente esses filmes com cenas de sexo e drogas não gosto muito mas é parecido com o que estamos vivendo no momento pandemia. Agora realmente com essa doença por aí que tem que haver o distanciamento eu acredito que beijo também não pode. Obrigada pela dica,vou assistir. Abraço!

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