O LUGAR MAIS PERIGOSO DO MUNDO

Uma pequena ilha, com aproximadamente 43 hectares, que se eleva em até 206 metros além do nível do mar e está distante 35 quilômetros do litoral do estado de São Paulo – nas proximidades dos municípios de Peruíbe e Itanhaém –, provavelmente seja o lugar mais perigoso do mundo. Isso é tão sério que a Marinha do Brasil não permite que qualquer pessoa desembarque nela, que hoje em dia é totalmente desabitada. Seu nome oficial é Ilha da Queimada Grande, mas ela também se tornou conhecida como Ilha das Cobras. Isso porque por lá existem mais ofídios do que em Brasília.

O gestor da área é o ICMBio, que também responde por outras cerca de 330 unidades de preservação ambiental em todo o Brasil, seja no interior do continente ou na costa marinha. A sigla refere-se à instituição, cujo nome é Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. E ele vem sendo ameaçado de extinção pelo Governo Bolsonaro, desde o início do ano passado. Enquanto existe, é o responsável pela ilha citada e pela outra próxima, chamada Ilha da Queimada Pequena. Ambas integram área de enorme interesse, uma vez que contêm uma biodiversidade muito própria, não encontrada em outros locais. O nome oficial da primeira ilha veio do fato de que pescadores no passado a costumavam ocupar para descanso e, nessas oportunidades, faziam fogueiras para espantar as muitas cobras. O segundo, que se trata de um apelido, fica ainda mais evidente: se deve ao fato de as principais moradoras serem justamente elas.

O Instituto Butantan realiza pesquisas no local, mas os profissionais que vão até ela tomam cuidados extremos. Depois de permissões especiais, que precisam ser providenciadas a cada visita, o risco começa logo no desembarque, uma vez que o costão rochoso é bastante escorregadio. As caminhadas exigem vestimenta especial. E para a coleta e manejo das espécies usam equipamentos bem específicos: ganchos longos, pinções herpetológicos – um primo mais velho do famigerado “pau de self”, que usam para prevenir acidentes com animais peçonhentos – e tubos e caixas de contenção e transporte.

A jararaca ilhoa (Bothrops insularis) é uma espécie que desenvolveu algumas características muito próprias. Em função de não existirem presas terrestres para o seu consumo, como pequenos roedores, ela se adaptou e aprendeu a subir em árvores para atacar aves. Como essa espécie de caça é mais difícil, a seleção natural tornou o seu veneno mais letal, para que as presas sejam abatidas mais rapidamente. Outra coisa é que adquiriu hábito diurno, por causa das aves; além de ter a capacidade de se camuflar no meio da vegetação (mimetismo). Isso tudo a tornou única e despertou interesse da ciência em acompanhar a sua existência. Mas, além desta cobra, existem na ilha insetos, aranhas, lagartos e aves, entre as quais o conhecido atobá.

O veneno da jararaca ilhoa, a partir das pesquisas feitas, passou a ser usado para a produção de remédios para controle da pressão arterial das pessoas. Isso foi feito com suas toxinas, que são sintetizadas. Existem, entretanto, outros trabalhos de bioprospecção em desenvolvimento, todos voltados para estabelecer novas possibilidades do seu uso pela indústria farmacêutica. Essa situação é conhecida, o que tem causado pirataria, com a captura não autorizada dos animais. Mesmo assim, a população de cobras tem se mantido estável, quanto ao número.

Simbolicamente, as serpentes são o oposto do homem. É tida como uma criatura fria, sem patas, rastejante, sem pelos nem plumas. A extrema simplicidade; nada evoluída como é ou deveria ser o homem, que sempre caminhou e aprendeu inclusive a voar. Em Camarões, caçadores pigmeus as identificam apenas com um traço no chão. Mas um traço que indicam estar vivo. Ela é um ser que se enrosca, abraça, beija, mas envenena ou sufoca, devora e digere. Os caldeus usavam a mesma palavra para vida e para cobra. Em árabe, elas são quase idênticas: el-hayyah (serpente) e el-hayat (vida). O médico brasileiro Vital Brazil foi quem inventou o soro antiofídico, tirando do veneno que mata o antídoto que mantêm a vida.

Para concluir, preciso lembrar da recente tentativa e persistente esforço para matar a ciência e a pesquisa, em nosso país. Isso identifica quem não se preocupa com o meio ambiente. Os que querem acabar com quem protege essa e tantas outras “ilhas”, onde o conhecimento luta para sobreviver. Vital, o médico citado, foi fundador do Butantan, instituto que ensinou ao mundo como se proteger das cobras – e que segue com trabalhos como o citado na abertura. Que produziu a primeira vacina contra a Covid 19 no Brasil. Aquela, que algumas “cobras bípedes” primeiro disseram que não comprariam; depois que não eram eficazes; mais adiante que não usariam. Tudo contribuindo para a morte de milhares de brasileiros que não tiveram tempo de ser “picados” no braço. E contra o veneno da ignorância não existe soro.

17.09.2021

Jararaca ilhota

O bônus de hoje tem uma música que não oferece o perigo das cobras. Ao contrário: ela é bem alegre. Mas fala um pouquinho de quem vive no mar, de riscos, do enfrentamento do medo. Nesse último item, estamos todos precisando investir. Então, que se ouça Risco, com Marcela Taís.

O VENENO NOSSO DE CADA DIA

No Estado onde eu nasci e sempre morei, o Rio Grande do Sul, o mais meridional entre todos no Brasil, desde 1982 existe uma lei que tornou mais rigoroso o controle sobre o uso de produtos agrotóxicos e biocidas em seu território, comparativamente com o restante do país. E essa conquista foi simplesmente o resultado da inclusão, no texto legal, de uma norma bastante lógica: não se pode comercializar e usar nenhum produto que tenha sido banido no seu país de origem. Ou seja, se quem o fabrica prefere não correr os sérios riscos que sua aplicação pode trazer, por que cargas d’água devemos ser cobaias para os laboratórios ou, no mínimo, permitirmos sua lucratividade quando saúde e vidas em jogo são as nossas e não as deles?

No restante do país – desconheço se alguma outra unidade federativa também tratou de se proteger melhor, como a nossa – basta o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Assim sendo, dando um exemplo, se um laboratório alemão produz um agrotóxico que na Alemanha não é aprovado para uso, ele não pode ser adquirido e usado por agricultores gaúchos. E vale o mesmo para produtos de quaisquer outras procedências. Mesmo com todo esse cuidado, nos últimos 39 anos, é altíssimo o índice de mortalidade devido a aplicações disso que a publicidade sempre fez questão de chamar de “defensivos agrícolas”. Porque mesmo os autorizados são muito tóxicos, a quantidade aplicada foge ao recomendado e ainda porque entram ilegalmente muitos que não poderiam estar sendo usados.

No Brasil, entre 2010 e 2019 foram oficialmente registrados 46,7 mil atendimentos de intoxicações diretas por agrotóxico, no momento do seu uso. Deste total, mais de 1,8 mil pessoas acabaram morrendo, com ênfase no sudeste e no nordeste. Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) aponta para uma enorme subnotificação, significando que foram muito mais casos. Na última década a comercialização em nosso país vem crescendo, segundo os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IDS), estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No ano de 2017 já foram mais de 500 mil toneladas. Em 2016 já aplicavam em média 6,9 quilos por hectare plantado; sendo hoje muito mais. E 64,1% dos venenos eram considerados perigosos e outros 27,7% muito perigosos. Como eles ficam residualmente nos alimentos, chegam ao corpo humano, onde se acumulam. A imensa maioria não é expelida, ficando armazenada no organismo e sendo importante causa de vários tipos de câncer.

O agrotóxico mais usado no Brasil é o glifosato – o Roundup, da Monsanto –, que vem sendo banido em toda a Europa. Os poucos países que ainda permitem seu uso, determinaram prazo final para a retirada, até início de 2023. Ele está relacionado aos cânceres de mama e de próstata, linfoma e várias mutações genéticas. A International Agency for Research on Cancer (IARC), da Organização Mundial da Saúde, confirma isso. A Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) tem alertado para a grave situação na sua área de abrangência. Segundo a instituição, os agricultores têm abusado do uso de substâncias para secar culturas fora da época da colheita, buscando ampliar resultados. Além do glifosato, eles têm aplicado o 2,4-D, que é um dos componentes do “Agente Laranja” que o exército dos EUA usava durante a Guerra do Vietnã para desfolhar árvores e identificar soldados inimigos que nelas se escondiam, para emboscadas. Ele causa necrose nos rins e morte de células pulmonares, provocando asfixia. Pior é que pessoas acometidas não podem sequer receber oxigênio, porque o gás potencializa o efeito da droga.

Agora, diante desse quadro modesto e incompleto que apresento, porque a situação é muito mais complexa e grave, fica uma pergunta que não quer calar. Por que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, encaminhou para a Assembleia Legislativa, em caráter de urgência, um projeto de lei que, entre outras providências, retira aquela defesa extra – mesmo insuficiente – que a população ainda tem? A votação deve ocorrer essa semana. Se ele for aprovado, as substâncias proibidas no exterior poderão entrar no nosso Estado legalmente, agravando algo que há muito vem fugindo do controle. Que interesses estão por trás disso? A saúde da coletividade pode ser oferecida de bandeja, para lucro extra de alguns poucos?

29.06.2021

No bônus de hoje, Chico César com a música Reis do Agronegócio. O nome completo desse compositor, cantor, jornalista e escritor natural da Paraíba é Francisco César Gonçalves.