AMANHÃ VAI SER MAIOR

O livro é de 2019. Portanto, quando ele foi escrito a situação em nosso país já estava ruim mas, com certeza, era menos grave do que atualmente. Isso é óbvio, uma vez que só tem piorado desde então, como se a gente buscasse o fundo de um poço sem fundo. Seu título é o que está repetido nessa crônica, numa apropriação em homenagem, sem nenhuma intenção de ser um furto intelectual. Amanhã Vai Ser Maior – O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual, escrito pela cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado mais do que merecer, precisa ser lido.

Na orelha da obra está uma apresentação da autora que no mínimo a torna digna de uma imensa curiosidade dos leitores, a respeito das ideias que ela defende com seu texto claro e objetivo. Atualmente leciona no Departamento de Ciência Política e Social da Universidade de Bath, no Reino Unido, sendo também colunista no The Intercept. Gaúcha, natural de Porto Alegre, ela vem estudando os impactos de ordem política e econômica do comércio do “Sul Global”, em especial da China e Brasil. Mas, nessa obra em especial, se debruça sobre o período de tempo que vai desde as jornadas de junho de 2013 até a vitória de Jair Bolsonaro, nas eleições presidenciais de 2018.

A apresentação dos textos não é feita na tradicional forma de capítulos. A autora preferiu dividir tudo como se fosse uma peça teatral. Tem na abertura, depois do prefácio assinado pela também antropóloga e professora na Universidade de Brasília, Debora Diniz, uma introdução. E o conteúdo segue dividido em cinco partes: prelúdio, três atos distintos e um réquiem. No Prelúdio ela analisa o ativismo do Século XXI com as suas peculiaridades muito próprias, partindo dos rolezinhos que eram feitos por jovens periféricos nos shoppings, passando pelos protestos contra o aumento no preço da passagem no transporte público – a revolta dos 20 centavos – e chegando na greve dos caminhoneiros. No Ato I discute como se deu o avanço da direita, desde 2014, o que é complementado no Ato II, quando se dedica a explicar o simultâneo recuo da esquerda. No Ato III se debruça enfim sobre o bolsonarismo propriamente dito. E depois dedica o Réquiem da Desesperança para dar alguma visibilidade para as formas de luta e de resistência, que foram se anunciando por todos os lados. Formas essas que só fizeram crescer, desde que o livro foi lançado. Mas que podem ser  melhor compreendidas em sua gênese, com a leitura da obra.

A autora busca mostrar ao leitor aquilo que colheu em pesquisa de campo, nos relatos obtidos em entrevistas feitas com pessoas reais. Ilumina a cena e facilita a visão sobre a vida de sujeitos das classes mais populares, para mostrar o quanto houve de abalo causado pela crise econômica. E isso evidencia razões pelas quais uma boa parcela dos mais pobres aderiu ao discurso lamentável do atual presidente. Ela fez isso ao entender que não há como buscar rotas de fuga senão com o entendimento de como se deu a história completa dessa trajetória rumo ao poço.

Um aspecto que mereceu especial atenção da antropóloga foi aquele oferecido pelo movimento #EleNão. Essa manifestação, que varreu o Brasil de ponta a ponta, não resultou em ganho eleitoral para Haddad, como teria sido desejado, em 2018. Mas serviu para marcar encontro histórico da política nas ruas com a esperança feminista de, afinal, termos uma transformação social. É nesse trecho que o livro melhor dialoga também com outras formas emergentes de lutas contra o capitalismo, que estão sendo agora pautadas por questões de gênero, raça e sexualidade.

Enfim, por abordar o bolsonarismo a partir de aspectos menos falados, o livro nos oferece outras explicações para esse fenômeno de aparente emburrecimento coletivo que tomou conta do país. Mas tem o poder de nos anunciar um amanhã. E fez isso muito antes das eleições que se aproximam. Antecipou, então, a certeza de que existe um futuro que nos acalenta, de dias muito melhores que virão. Convêm que se leia e logo. Porque esse é o tipo de combustível que se precisa nessa reta final.

28.07.2022

Hoje teremos outra vez bônus duplo. Primeiro um videoclipe com a música O Grito, do grupo porto-alegrense Capitão Rodrigo. Trata-se de gravação feita ainda quando foram deflagradas, na capital gaúcha, as manifestações contra o aumento no preço da tarifa do transporte público. Um fenômeno que depois se espraiou pelo país todo. Depois temos Ana Cañas com a excelente Mulher.

O Grito – Capitão Rodrigo (Porto Alegre)
Mulher – Ana Cañas

DICA DE LEITURA

AMANHÃ VAI SER MAIOR – O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual

Rosana Pinheiro-Machado – 192 páginas – R$ 23,99

Desde as grandes manifestações de 2013, boa parte dos brasileiros possui uma única pergunta: o que está acontecendo com o país? Muitas pessoas se sentem em um trem desgovernado por causa de transformações profundas que o Brasil sofreu nos últimos anos, sem saber como dar sentido, viver e combater o caos diário. Este livro da professora, antropóloga e colunista Rosana Pinheiro Machado possui dois objetivos. Primeiro, jogar luz sobre este período de crise, trazendo uma análise do cenário político e social desde as “Jornadas de Junho” até a eleição de Jair Bolsonaro, sem jargão acadêmico. Depois, apontar as saídas que se delineiam no horizonte – e mostrar que já estamos construindo possibilidades de resistir em tempos sombrios. Leitura mais do que apropriada para AGORA, antes das eleições de outubro.

Basta clicar sobre a imagem da capa do livro e você será direcionado para a possibilidade de aquisição. Comprando através desse link, o blog será comissionado.

SEM AÇÚCAR

Quem não gostaria de descobrir um novo modo de interpretar a vida e aproveitá-la muito mais e melhor? A autora Flávia Helena, de Atibaia, tenta ensinar isso com seu livro de estreia, Sem Açúcar. O volume nos oferece 27 contos produzidos pela paulista, todos narrados em terceira pessoa, nos quais ela trata de enfocar afetos de homens e mulheres, quase sempre marcados pela solidão. No fundo, uma surpreendente e coesa maneira de analisar o amor, ao reinterpretar relações afetivas. O título é o de um dos textos deliciosos que o compõem.

A linguagem fluente vai tratando a cada página de temas que são de fato essenciais para a vida humana. Temos amor, sexualidade, traição, as sempre complicadas relações familiares e muito mais, tudo retratado com uma suavidade que conduz o leitor sem qualquer excesso ou drama para o interior da vida. Cada personagem se mostra como se fosse mesmo o engenheiro do seu próprio corpo, se construindo ou reformando, tendo posturas que escondem ou que mostram seus tesouros e as suas más formações. Um exemplo é a mulher seca, na qual a barriga vai aos poucos concentrando toda a liquidez que dela é drenada. Ou ainda a história da menina que não suporta perceber o despontar da sua sexualidade, se incomodando com o “mostrar peitos e bunda”. Ela resolve se esconder o tempo todo sob uma capa de plástico fininha, que vai sendo assimilada e transformada numa segunda pele, a qual se torna áspera e coberta de pelos grossos. Depois vão surgindo os músculos rígidos e a barba no rosto.

A leitura nos oferece prazer e nos permite identificar a nós mesmos ou no mínimo a alguém real, que se conhece, em alguma das dezenas de personagens que vão sendo apresentados. A facilidade com a qual Flávia nos oferece seus textos fica evidente até em duas das frases com as quais abre a obra: “As estórias desse livro, inventadas, são todas de verdade. Porque essa vida, que a gente insiste em chamar de real, essa, sim, é ficção.”

Outro exemplo sobre essa confusão natural, entre realidade e ficção, está no conto onde uma mulher, querendo refrear o choro que a consumia, passa a comer formigas. Mas não daquela forma como por tradição culinária acontece no Nordeste, no Vale do Paraíba (SP) ou na zona rural de Minas Gerais. Nesses três pontos as tanajuras são ingrediente de farofas bem populares. A do livro devora de todas as espécies e compulsivamente. Só que os insetos engolidos não se contentam em beber as lágrimas na sua origem, passando a consumir outros líquidos e a própria carne da devoradora, que começa a murchar, com rosto e corpo cada vez mais enrugados. Como vão ficando todos os nossos, com o tempo e sem formigas.

Em Cleptomania, outro dos contos, uma mulher tida como pessoa exemplar na localidade onde vive passa a furtar objetos de pouco valor de quem conhece. Mas, junto com eles, ela se apropria também de características pessoais das suas vítimas. E até mesmo afeta o destino delas, como aquela outra que é sua colega de trabalho de quem leva uma presilha. Mas fica depois com o seu noivo, também. Agora, uma das mais fantásticas situações talvez seja a do homem que rouba palavras com sua língua, da mulher a quem beijava.

Flávia Helena é professora de Literatura e já tinha contos publicados em diversas antologias. Também é autora da peça teatral Trama e do livro de crítica literária O Fabricante de Textos. Esse seu primeiro livro solo, de contos ficcionais, mostra a que ela veio e merece muito ser lido. Depois, ficaremos todos torcendo para que o próximo trabalho não demore.

29.05.2022

O bônus de hoje é a música Tous les garçons et les filles (Todos os meninos e meninas), com Françoise Hardy. Esta francesa foi considerada uma das mais bem sucedidas e influentes artistas do seu tempo, sendo extremamente popular em seu país.

PARA ADQUIRIR O LIVRO COMENTADO

SEM AÇÚCAR, de Flávia Helena

(114 páginas – R$ 34,00)

No momento ainda não temos a ilustração que reproduz a capa do livro. Quando ela estiver disponível faremos a edição, acrescentando. Mesmo assim, clicando sobre o ícone acima, que ocupa seu lugar, haverá direcionamento para a possibilidade de compra. Faça isso usando esse link e o blog será comissionado.