O MERCADO NÃO PASSA FOME

Gente, com toda a sinceridade: eu acho que todos nós deveríamos ter medo desse tal Mercado. Ele é, tipo assim, o Bicho-Papão dos adultos, com a diferença que tem muito maior probabilidade de não ser apenas uma criação imaginária. Cada vez que eu estou aqui na minha sala e o Bonner, ou outro apresentador qualquer de telejornais, diz que ele pode ficar nervoso, por algum motivo qualquer, nervoso fico eu.

O cara é tinhoso e não tem rosto, mas tem suas excentricidades. Posso dar alguns exemplos: quando o governo federal gastou R$ 1,96 trilhão apenas com juros e amortizações da dívida pública, no ano de 2021, ele permaneceu calmo. Mesmo sabendo que isso representava um aumento de 42% em relação ao valor gasto em 2020 e que esse, por sua vez, já havia sofrido outro incremento violento sobre 2019 – foi de 33%. Essa voracidade não lhe tocou em nada. Até porque, precisamos entender isso, toda essa fortuna é devorada por ele. Entretanto, quando se fala em investir R$ 150 bilhões no próximo ano para saciar a fome não de uma entidade, mas de 33 milhões de brasileiros, ele sai da escuridão rugindo.

Agora, enquanto os recursos destinados ao Bolsa Família retornam de várias maneiras para os cofres públicos, aquele outro que é 13 vezes maior só rende mais e mais dinheiro para os rentistas. Não salva uma vida, uma alma, um futuro. Quando uma pessoa pega lá seus 600 pilas gasta no mercadinho do bairro, que compra mercadorias para repor estoques, que emprega pelo menos um ou dois funcionários. Tudo isso gera impostos, que voltam para os cofres públicos, e também postos de trabalho no comércio e na indústria. Mas, quando esse tal Mercado recebe a grana toda do governo, ele reaplica para receber outra vez juros, de preferência maiores.

Também precisamos prestar atenção em um detalhe: esse monstro tem um sobrenome, que raramente é pronunciado. Nas notícias aquelas, tratam ele com intimidade, apenas como Mercado. O Financeiro em geral é esquecido, posto de lado. O que é injusto, porque ele tem um parente nem tão distante com o mesmo prenome, o Produtivo, que não merece levar a culpa pelas ações – e maldades – desse que nos mete medo. Me vem à mente aquela imagem do anjinho e do diabinho, ambos pousados um em cada ombro da gente, cada um ditando direto a um dos ouvidos o que deseja ser nosso posicionamento e ação. De vermelho, o Mercado Financeiro fica sussurrando coisas como “Estado mínimo”, “teto de gastos”, “cortes nos programas sociais”. De azul, o Mercado Produtivo tenta responder com “investimentos públicos e privados”, “geração de empregos”, “desenvolvimento”, “distribuição das riquezas” – mesmo que essa última não seja exatamente o seu desejo e sim uma necessidade. Claro que esse segundo também visa lucros: visa e esse é um direito seu, no sistema capitalista em que vivemos. Mas o primeiro é adepto de uma corruptela de citação evangélica: “venha a nós tudo, ao vosso reino nada”.

No Economês chamam o pagamento de juros, essa sangria absurda, de “serviço da dívida”. Eu, na minha ignorância, não consigo entender. Não se trata, na verdade, de um desserviço? Outro detalhe: raramente se vê cálculos que apontem minimamente o quanto se poupa em termos de saúde e segurança pública, quando pratos antes vazios recebem os alimentos necessários, periodicamente. Isso sem contar que também tem imenso valor a autoestima, o respeito, a dignidade restituída. Mesmo que isso não possa ser convertido facilmente em dólares.

A questão chave pode ser explicada de modo simples, com a frase que usei no título desta crônica: o mercado (financeiro) não passa fome. Ela não é minha, o que lamento muito. Isso porque é precisa e cirúrgica, como todo jornalista gosta ou deveria gostar. Quem disse isso foi a presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann. Então, vamos seguir com a esperança de que, com a posse do novo governo, se lute para outra vez tirar nosso país do mapa da fome. E também de que a equipe que assuma com Lula possa controlar um pouco mais o apetite desumano desse ser que, paradoxalmente, se mostra ao mesmo tempo abstrato na aparência e muito concreto em sua brutalidade.

14.12.2022

O bônus musical de hoje é outra vez duplo. Primeiro temos o áudio de A Fome, de Paulo Padilha. Depois é a vez do clipe de Esmola, com os mineiros do Skank.

Paulo Padilha – A Fome

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A GENIALIDADE DE MAX BORN

Um dos cientistas mais importantes do Século XX foi Max Born. Fica um pouco difícil de enumerar-se o que ele fez, em virtude de sua produção integrar uma relação onde estão os conhecimentos mais complexos. Os que têm aplicação imensa para estudos científicos, mas não naquelas questões mais práticas, do cotidiano. Entretanto, apenas para que se determine o quanto é relevante o que ele produziu, vamos começar dizendo que foi um grande amigo de Albert Einstein, que nutria por ele enorme respeito. Mesmo que houvesse distância geográfica entre eles, mantinham uma considerável troca de cartas, o que foi feito por mais de quatro décadas e se tornou um acervo de extremo valor.

O conteúdo das missivas – difícil alguém que veio ao mundo em plena era de trocas de mensagens eletrônicas entender – iam de assuntos absolutamente pessoais até questões ligadas à física quântica e ainda ao papel que deveria ser desempenhado por cientistas, num mundo muito conturbado. Afinal, ao longo desse tempo todo, o mundo vivenciou duas guerras mundiais. Também dividiam informações sobre seus gostos, no que se refere à música.

Em uma dessas cartas, que foi enviada por Einstein em 04 de dezembro de 1926, ele escreveu um trecho que, depois delas terem sido tornadas públicas, acabou ficando famosa, pela forma quase didática como foi elaborado. “A Mecânica Quântica certamente é impressionante, mas uma voz interior me diz que ainda não é satisfatória. A teoria rende muito, mas dificilmente nos aproxima do segredo do Criador. De qualquer forma, eu estou convencido de que ele não joga dados.” Essa foi a forma com a qual ele externou sua recusa em aceitar a visão probabilística da Física Quântica. Na opinião dele, aceitar esse fato, dar importância ao que seja aleatório, seria uma forma de escapar da confissão, da admissão de uma incapacidade de se chegar até àquelas variáveis que pudessem permitir a construção de uma teoria completa.

Segundo a visão quântica, que descreve o comportamento da pequena porção da matéria composta por partículas atômicas e subatômicas, se torna perfeitamente possível afirmar que cada uma delas está e não está, ao mesmo tempo, em determinada posição. Ou seja, admite como muito possível e provável mais de uma alternativa simultânea. E Max Born foi sempre um dos principais defensores dessa suposição revolucionária. Ou seja, ele acreditava piamente que Deus joga dados, sim. Agora, se torna interessante verificar que os pontos de vista contrários jamais se tornaram razão para afastamento ou conflito. Porque isso não seria de modo algum interessante: ao contrário de posicionamentos políticos recentes, por exemplo, da divergência surge luz. E não aquela dos celulares sobre as cabeças: essas “luzes” estão é no interior delas.

Born explorou cada vez mais a fundo aquilo que sua teoria indicava como verdadeiro. E conseguiu, com isso, estabelecer boa parte das bases de uma Física Nuclear moderna, mesmo que não tenham seus esforços sido reconhecidos de imediato. Ganhou um Prêmio Nobel apenas 28 anos depois de ter concluído o seu trabalho, em 1954. Judeu polonês, nascido em 1882, formado nas tradições clássicas da ciência do Século XIX, teve que fugir do nazismo abrindo mão de sua cidadania e do doutorado que cursava. Acolhido pelo Reino Unido, sua preocupação intelectual estava focada nas consequências da ciência moderna para o Século XXI. E acreditava, por exemplo, que nenhum cientista tinha o direito de permanecer neutro, diante das consequências do seu trabalho.

Horrorizado com o uso militar das descobertas científicas, era defensor ferrenho da destinação humanitária do conhecimento. Ele entendia que, por mais distante que um trabalho científico possa estar da aplicação técnica dos seus resultados, existe a importância ética e moral, sendo ele um elo que integra a cadeia de ações e decisões que implicam no futuro, no destino da raça humana. E via que este poderia ser sombrio, de modo especial devido a decisões políticas e armamentistas. “Creio que ideias como certeza absoluta, precisão e verdade suprema, são produtos que não deveriam ser admissíveis em nenhum campo da ciência”, afirmou Born, certa vez. Posso acrescentar que nem da vida cotidiana, sem que isso contrarie o seu pensamento.

12.12.2022

O bônus musical de hoje é com Almir Sater: o áudio de Verdade Absoluta.

Verdade Absoluta, de Almir Sater

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