A FALSA ABOLIÇÃO

Esta quinta-feira, 13 de maio, marcou a passagem dos 133 anos da data em que a então regente do Brasil, Princesa Isabel, assinou a Lei Áurea, documento que abolia a escravatura e, em tese, libertava os mais de 4,9 milhões de negros escravizados que viviam em nosso país naquele momento. No entanto, o texto legal que tirava dos senhores brancos o direito de propriedade sobre esses homens e mulheres trazidos à força da África, não lhes garantia sequer um mínimo de dignidade e condições de subsistência. Os que saiam das senzalas tinham de seu apenas a roupa do corpo e a capacidade de trabalho. Ou se tornavam retirantes miseráveis ou suplicavam pela permanência na penúria que sempre viveram. Na prática, a imensa maioria precisou se submeter a continuar trabalhando nos mesmos locais, para os mesmos senhores, apenas em troca da comida. Se legalmente deixava de existir o abismo que havia entre brancos e negros, na prática se instalava uma dura realidade de desigualdade social e racial, que perdura com não raros requintes de crueldade, até os dias de hoje.

Três anos depois, em 1891, quando elaborada a Constituição da República Federativa do Brasil, os escravos libertos não tiveram participação alguma no processo e nem sequer foram por ela lembrados. Mesmo sem ser explícita nesse sentido, ela permitia tratamento distinto entre essa nova população e os demais integrantes da sociedade – leia-se os brancos originários da Europa. Até mesmo alguns meios de “garantir a disciplina” e calar vozes foram normatizados. Na época já se faziam vistas grossas aos castigos físicos e aos “excessos” da liberdade de imprensa. Os negros eram vistos como potenciais criminosos e tinham pouca ou nenhuma proteção da justiça. Se em tese haviam sido aceitos como integrantes do povo brasileiro – antes não eram pessoas, mas mercadoria –, não resta a menor dúvida de que lhes era destinado serem cidadãos de segunda classe. A Lei Áurea, de tão pouco tempo antes, não concretizara de fato o abolicionismo. Isso porque, mesmo tornando ilegal a escravidão, não dava liberdade real, uma vez que essa está relacionada diretamente com reponsabilidade coletiva e ações políticas.

Estigmatizados, os negros passaram a ocupar periferias onde até hoje se encontram, na sua maioria. Em pleno Século XXI, mesmo representando 54% da população do nosso país, negros e pardos têm um índice de 71,7% entre todos os desempregados. Quando em ocupação formal, estão majoritariamente em cargos e funções de menor relevância e pior remuneração. Esses são dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de antes do começo da pandemia que estamos todos enfrentando. É mais do que provável que tal realidade tenha piorado ainda mais. Outro dado alarmante, esse trazido pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), mostra que o analfabetismo entre pretos e pardos é três vezes maior do que entre brancos. Seu acesso ao ensino superior por muitos e muitos anos não passou de um sonho impossível. As exceções deixaram de ser tão raras a partir da recente política inclusiva, das cotas raciais – a lei é de 2012 –, que agora é duramente atacada pelos supremacistas brancos. E o impressionante é que estes chegaram ao poder recebendo também votos de negros.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ainda relativos ao ano de 2017, informam que cerca de 70% dos ocupantes dos presídios brasileiros não eram brancos. E a justiça que encarcera negros em muitas ocasiões parece mesmo ter os olhos vendados. Pesquisa da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, com sede em São Paulo, constatou uma outra verdade constrangedora. A média da quantidade de maconha apreendida com pessoas brancas é de 1,15kg, enquanto as pessoas negras detidas carregavam em média 145 gramas. Entretanto, as condenações por esse crime são de 71,35% dos negros e 64,36% dos brancos. Desproporções semelhantes foram constatadas quando outros entorpecentes são avaliados na pesquisa. A justificativa dessa diferença em geral é atribuída à classificação de “usuários”, dada para a maioria dos brancos, enquanto a quase totalidade dos negros são identificados nos processos como traficantes.

Por tudo isso e muitas outras razões, o dia 13 de maio é considerado pelo movimento negro não como uma data a ser comemorada, mas apenas como um dia de intensificar a luta contra o racismo. O dia 20 de novembro, que assinala a morte de Zumbi dos Palmares, tem muito maior relevância. Porque simboliza a resistência, a identidade e a força de um povo que persiste na busca do reconhecimento de sua cultura, identidade e importância. E que deseja acima de tudo igualdade e respeito.

14.05.2021

No bônus de hoje, a música Retirantes, de Dorival Caymmi, compositor, cantor, violonista e pintor baiano. Ela é da década de 1970 e ficou ainda mais conhecida por ter sido adotada, pouco depois de composta, como tema principal da trilha sonora da novela Escrava Isaura.