O MITO DO AMOR ROMÂNTICO

Não é de hoje que nos é vendido o mito da existência do amor romântico, apresentado como um ideal que todos precisamos alcançar. E passamos então a buscar uma relação a dois que será simultaneamente composta por cuidado mútuo, companheirismo, aconchego e sexo de qualidade, tudo obtido através do convívio com uma única pessoa, ad infinitum. Evidente que todas essas coisas existem e que muitos conseguem ter mais de uma delas, ao mesmo tempo. Mas gabaritar essa lista quádrupla não é uma conquista corriqueira.

Primeiro, vamos esclarecer que o cuidado mútuo é algo interno, que diz respeito apenas aos dois, no relacionamento. São as atenções cotidianas e simples – ou não –, como cuidado com a saúde e com o bem estar do parceiro ou da parceira, a divisão de tarefas, a compreensão de que há momentos em que se precisa de colo e outros tantos nos quais se quer apenas silêncio e mesmo distância. O companheirismo é mais ou menos a mesma coisa, mas voltado ao que é externo. Como torcer pelo sucesso, estar presente naquilo que o outro faz, ir junto a lugares mesmo quando não do seu maior interesse, proteger e ser parceiro ou parceira diante de quaisquer problemas, mesmo os profissionais e familiares. Por sua vez, o aconchego é a intimidade, o prazer de ter um espaço comum, o agasalhar no frio, comer pipoca junto ao ver um bom filme na televisão, cozinhar algum prato, dormir de conchinha. E sexo eu entendo não ser necessário explicar aqui. No que se refere à qualidade, se subentende que seja do agrado de ambos, com respeito ao desejo e às limitações de cada um, em troca apropriada de carinho e atenção.

É possível mesmo que se encontre tudo, conforme esta fórmula ideal. Entretanto, esperar que tal aconteça o tempo todo, sinceramente não se trata de uma pretensão que tenha amparo na lógica. Acho que nem na estatística. Não acontece no cotidiano das relações, porque sempre existem desgastes que são trazidos pelo convívio e pelo tempo. Porque os descompassos são naturais, acontecem ao longo da vida. Assim sendo, se torna muito importante, até mesmo para a nossa saúde mental, se dar conta de que o ideal é apenas isso: um ideal, sem o compromisso de ser alcançado. Mais do que tudo, temos que entender que acreditar nesse amor romântico que nos é vendido pela sociedade, de certa forma seria como colocar sobre os ombros de outra pessoa o peso de se tornar responsável pela nossa felicidade. O que é injusto.

Se não estamos recebendo simultaneamente tudo aquilo que em algum momento nos ensinaram que se deveria receber o tempo todo, não existe uma culpa, uma responsabilidade. Até porque nós também não temos como garantir essa reciprocidade permanente. Existem momentos nos quais um ou mais destes itens estará em alta, com outros em baixa. A gente não acorda bem todos os dias, há indisposições que são físicas e outras não. Mas elas sempre aparecem, sejam quais forem. Belchior, na sua canção Como Nossos Pais – que na interpretação de Elis Regina beira à perfeição – afirma que “viver é melhor que sonhar”. Até pode ser, mas a diferença é que sobre os sonhos que se sonha acordado a gente tem um relativo domínio. Sobre os acontecimentos da vida real, apenas muito raramente isso acontece.

O modelo do amor romântico foi uma invenção intelectual. Não se pode esquecer que na maioria das sociedades humanas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, as pessoas em passado não muito distante primeiro casavam e depois procuravam encontrar o amor. Apenas mais tarde, quando se associou o amor com felicidade e também com os relatos trazidos pela literatura tendo que ter um final feliz, houve uma inversão. Ame primeiro e case depois, se tiver sorte de também ser amado ou amada pela mesma pessoa. A alternativa se tornou ficar sofrendo de amor, porque algo tornou impossível a sua realização. Como o caso clássico de Romeu e Julieta.

O imaginário social diluiu conceitos e sentimentos, tornando cada um deles uma construção apresentada como “natural”. E essa naturalização se tornou recurso para estabelecer, por exemplo, os papéis que deveriam ser representados por um ou outro gênero. Todos acreditamos nisso e acabamos caindo numa armadilha. Os contos de fadas precisavam ser reais, a perfeição é o mínimo que se aceitava e aceita. Mas neles a princesa fica no castelo, suspirando, enquanto aguarda a chegada do príncipe.A felicidade vem de fora e só chega quando formamos uma família dessas de comercial de margarina. Não tenho nada contra elas e até torço que venham a ser a maioria, pelo menos naquele aspecto tão saudável de todos os que estão sorrindo enquanto tomam seu café da manhã. Só entendo que isso é difícil. Do mesmo modo que acredito existirem muitos modos de sermos plenos, seja sozinho ou acompanhados. E isso é o que verdadeiramente importa: a plenitude, que é uma forma sublime de amor.

22.04.2023

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O bônus de hoje é Toda Forma de Amor, canção de Lulu Santos, em gravação com Stefano Mota em violão e voz.

FUCK ALL THOSE PERFECT PEOPLE

Eu já escrevi neste blog sobre a tendência que muita gente tem de se apresentar ou, no mínimo, imaginar que é um poço de perfeição. O texto foi postado em 30 de novembro de 2020 e vou deixar no final um link de acesso, para quem quiser conhecer ou relembrar. O mote naquela vez foi a pandemia, que nos levou a alterar muito do nosso comportamento de até então. Me referia a pessoas que juravam ter evoluído com tudo o que estavam passando, mas de uma forma abrupta, desconhecendo que as transformações profundas e verdadeiras requerem persistência, mesmo que um tratamento de choque sirva de fato para abrir os olhos. Mas passar a enxergar não significa de modo algum enfrentar e muito menos resolver as questões. No máximo isso é um primeiro passo de uma longa caminhada. Fosse simples assim, para que reencarnações? Considere essa pergunta apenas se você acredita nisso, lógico.

Cá entre nós, eu gosto mais daquela frase do poeta espanhol Antônio Machado: “Caminhante, não há caminho: o caminho se faz ao caminhar”. E me fará muito bem se eu lembrar dela agora na virada do ano, quando a tendência normalmente é nos preocuparmos com mirabolantes resoluções de ano novo. Promessas que são esquecidas muito rápido. Quem duvida, por favor tente lembrar agora das que fez nos últimos três, por exemplo. Não estou pedindo muito, já que três anos é uma amostragem bem pequena na vida da maioria de nós. E se houver o prodígio de lembrar – vai ver que escreveu, o que torna mais fácil –, seja honesto ou honesta consigo e verifique quantas delas foram cumpridas, total ou parcialmente.

A promessa mais realista deveria ser a de continuar caminhando. Seguir em frente com a disposição mais apropriada possível. Mas sem esquecer de olhar para trás e para os lados. Para lembrar de si mesmo em outros tempos e para não esquecer de estar atento a quem faz ou fez companhia nessa jornada. Pessoas que estão conosco ou que deixamos distantes, pelas contingências da vida. Talvez resgatar uma amizade, agradecer por algo que recebemos, tentar uma reaproximação, lembrar de quem tem menos, reduzir reclamações. Isso não nos tornará perfeitos, mas nos humanizará mais um pouco. O que, convenhamos, já seria um progresso extraordinário. Melhor do que jurar que vai emagrecer, que vai deixar o cigarro, voltar a estudar, frequentar a academia, por afinal as contas em dia e deixar de gastar tanto. Que será um pai ou mãe mais presente; se tornará melhor marido, esposa, pai ou mãe; que vai durar mais no emprego, se arranjar um. O comportamento que se tem sempre reflete muito do que se é. E somos moldados bem lentamente, cinzel sofrendo em pedra dura até que as feições pretendidas para a estátua de fato surjam, nos revelando.

Mas vamos deixar a dureza do mineral e passemos para a leveza do som. Quero fechar 2021 apresentando como bônus musical – teremos outro ainda – a faixa título de um álbum de Chip Taylor & The New Ukrainians, Fuck All Those Perfect People (Fodam-se Todas Estas Pessoas Perfeitas). Chip é norte-americano e a banda, apesar do seu nome Os Novos Ucranianos, na verdade é da Noruega. Outras curiosidades: Chip é irmão de Jon Voight e tio de Angelina Jolie.

Beber ou não beber /Pensar ou não pensar /Cantar ou não cantar /Orar ou não orar /Jesus morreu por alguma coisa – ou absolutamente nada. /Fodam-se todas aquelas pessoas perfeitas!” Esses são alguns dos versos, traduzidos. Não estão presentes nessa ordem na canção, mas são bons exemplos do que ele pretendia dizer. E sim, eu sei que o Natal se refere ao nascimento de Cristo e não à morte. Mas o som, garanto a vocês, está muito apropriado. Na abertura do clip está a talentosa atriz italiana Paola Fiorido, demitida de um programa de TV porque expressou “pensamentos negativos” a respeito de algumas pessoas que estão no poder, em nosso mundo. 

30.12.2021

Todo o cuidado é pouco
Chip Taylor & The New Ukrainians, Fuck All Those Perfect People (Fodam-se Todas Estas Pessoas Perfeitas)

Abaixo, o fechamento ideal do ano de 2021. O talentoso compositor Edu Krieger nos oferece uma retrospectiva bem humorada, em forma de paródia, relembrando fatos de um período que felizmente está terminando.