CARLOS LAMARCA, O CAPITÃO QUE FOI UM VERDADEIRO MITO

Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1937. Com 18 anos iniciou estudos na Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre. Após, esteve na muito reputada Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende. Anos mais tarde, integrou as Forças de Paz da ONU, servindo no Batalhão Suez, que teve atuação em Gaza, na Palestina. Precisou ir longe para se dar conta do que era injustiça social. Mas isso se estabeleceu de modo definitivo no seu modo de pensar e agir quando, em 1964 e já de volta ao Brasil, serviu na 6ª Companhia de Polícia do Exército. Estava outra vez na capital gaúcha, justo quando foi deflagrado o golpe militar de 1º de abril. Falo de Carlos Lamarca, que não tem sua memória cultuada e respeitada como deveria.

O primeiro problema que ele enfrentou foi devido a ter facilitado a fuga de um brizolista que estava sob sua responsabilidade. A solução foi pedir transferência e terminou indo para Osasco, em São Paulo, em 1965. Foi lá que recebeu promoção, em 1967, chegando a capitão. Nesse tempo todo, mesmo permanecendo nas Forças Armadas, não aceitava os rumos que estas estavam dando ao país após a derrubada de João Goulart, democraticamente eleito.

Homem culto, defensor de verdadeiras pautas nacionalistas – como a campanha “O Petróleo é nosso” – e leitor voraz de clássicos da literatura. Tinha adoração por “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, por exemplo. Excelente militar, com currículo invejável, exímio atirador e respeitado pelos seus pares, ele apenas não aceitava o uso das Forças Armadas não para a defesa dos verdadeiros interesses da Nação e sim para o de grupos minoritários que sempre detiveram o poder econômico e político. Quanto aos métodos, discordava frontalmente dos seus superiores no que se refere à tortura e aos “desaparecimentos” dos opositores, que ocorriam com frequência. Assim, nesse tipo de Exército, ele não mais poderia continuar.

Em 1969 ele organizou um grupo de militares para que desertasse junto com ele, no 4º Regimento de Infantaria. Conseguiu levar consigo 63 fuzis e metralhadoras leves, com o objetivo de iniciar a organização de um grupo de luta armada contra a ditadura. Antes disso, para garantir a segurança da família, mandou a esposa e dois filhos para o exterior. No início, ficou cerca de um ano clandestino na cidade de São Paulo, onde atuava em guerrilha urbana. Depois se instalou no Vale da Ribeira, com um grupo pequeno de militares, onde realizavam treinamento. Liderava a Vanguarda Popular Revolucionária em várias ações como, por exemplo, o sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, que depois foi trocado pela libertação de 70 presos políticos que estavam sendo torturados nos porões do DOPS.

Lamarca foi morto em 17 de setembro de 1971. Foi atingido por sete tiros disparados pelos agentes de repressão. O fato ocorreu em um pequeno município no interior da Bahia. Um mês antes se iniciara a “Operação Pejussara”, nome dado ao aparato preparado para deter o capitão. O grupo, formado por membros do Exército e da Polícia Militar, entrou para a história como um dos mais violentos já vistos. Buritis foi transformado em um verdadeiro campo de concentração. Lá ocorreram tortura e assassinatos em praça pública, diante da população estarrecida. Foi o método adotado para conseguir as últimas informações necessárias para a suposta captura dos “subversivos”. Foram localizados depois de 41 dias de cerco feito por 215 homens. Com Lamarca, que estava com 34 anos, morreu um outro membro da resistência, conhecido como Zezinho. As características como se deu desfecho ao caso evidencia uma simples execução. Eles já estavam dominados, totalmente incapazes de oferecer resistência, quando os tiros foram desferidos.

Em 1980, Emiliano José e Oldack de Miranda publicaram o livro “Lamarca: o capitão da guerrilha”, algo que foi um pouco além da sua biografia. Depois de 17 edições a obra, que resultou de um amplo trabalho de investigação, ganhou em 2015 uma versão ampliada, com ainda maior riqueza de detalhes. Ela serviu como base para roteiros de dois filmes. Um deles, feito pelo diretor Sérgio Rezende, “Lamarca”, ainda em 1994, com Paulo Betti, Carla Camurati e José de Abreu. No final dessa crônica está à disposição um link que permite que ele seja visto na íntegra no YouTube. Isso ajuda que se conheça melhor o patriota que esteve ao lado do povo e não contra ele. O homem que sempre repetia, ao final dos seus textos, a frase “ousar lutar, ousar vencer”.

18.12.2022

O bônus musical de hoje é o áudio de uma versão de Bella Ciao, essa cantada pela francesa Anouk. A faixa foi gravada e mixada por Florian Jerrige e Romain Mairesse. Logo abaixo, conforme prometido, acesso ao filme Lamarca, para que você veja quando dispuser de tempo.

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UMA NAÇÃO OCUPADA

O jornalista maltês Joe Sacco tem uma forma muito própria de levar seus relatos aos leitores. Ele faz imersões nos locais sobre os quais deseja escrever e, depois disso, apresenta a reportagem não apenas em forma de texto, mas com ilustrações. Essas não são fotografias, mas desenhos que retratam a realidade numa história em quadrinhos onde não existem heróis, mas pessoas simples que vivem no seu cotidiano aquilo que o profissional busca mostrar. O tema é sempre sério, os dados coletados são precisos e o seu talento em usar papel e nanquim materializa tudo numa obra que merece não apenas ser lida, como também guardada. Tenho alguns desses álbuns, cinco no total.

Dois dos livros são sobre o conflito entre palestinos e israelenses: Palestina Uma Nação Ocupada (1996) e Na Faixa de Gaza (2010). Com o primeiro ele ganhou o prêmio do American Book Award, além de enorme prestígio. Outros dois descrevem guerras ocorridas quando da dissolução da Iugoslávia: Área de Segurança Gorazde (2000) e Uma História de Sarajevo (2003), outra vez sendo ele premiado com o primeiro desses títulos, ao receber distinção oferecida pela Fundação Guggenheim. O quinto que possuo é Derrotista (2003), que foge dessas experiências mais extremas e aborda questões pessoais, algumas autobiográficas. São histórias curtas e sarcásticas, viagens que fez pela Europa, sua vida como bibliotecário e uma banda de rock que teve. Mas o trabalho de Sacco resultou em outras publicações, que infelizmente não consegui adquirir até agora. Como o pioneiro Yahoo, ainda de 1988. Ou ainda o comics chamado Stones, que foi publicado inicialmente na revista Zero Zero.

Falando de Palestina: Uma Nação Ocupada, não há a pretensão de ser esse um relato definitivo sobre esta desavença histórica. Ele é apenas um recorte, uma página a mais a respeito de um tema que seguirá tendo muitos aspectos para serem explorados. Mas é um modo diferente de entrar no entendimento do assunto, mesmo que sem toda a profundidade que ele sempre irá merecer. A tensão entre palestinos e israelenses parece ser eterna. Ou ao menos teve uma razão para começo, mas ninguém ousa arriscar que venha a ter um fim, mesmo que se torça para isso acontecer. Ela vai muito além dos já suficientes impasses de cunho religioso e territorial, envolvendo ainda a própria identidade nacional dos cidadãos dos dois lados. Sacco tenta contar como cada um desses lados vê essa situação, tendo circulado em ambos os territórios, para entender essa relação turbulenta. Precursor do jornalismo em quadrinhos, também difere seu trabalho o fato dele próprio se inserir no relato. Ele não está invisível nas histórias: ao contrário, faz questão de mostrar que está presente nelas e nas regiões ocupadas, frequentando casas e estabelecimentos, vendo os fatos, colocando também suas opiniões e idiossincrasias.

O trabalho jornalístico nesse caso é como o de alguém que recolhe todos os retalhos possíveis e com eles faz uma colcha. São pedaços de histórias que se entrelaçam; são desenhos que se seguem, costurando a narrativa em cada quadrinho. A arte de Sacco leva os seus leitores diretamente a vários depoimentos dados por aqueles que vivem os dramas diários na região. Mostra uma nação ocupada, mas com a honestidade de procurar entender motivações. Há sinceridade maior do que na imensa maioria das coberturas feitas até hoje pelos grandes meios de comunicação. E agora, quando outra vez o ódio mútuo e as agressões explodem, mostrando que os momentos de paz são apenas intervalos entre as conflagrações, se faz necessário ler – ou reler, no meu caso – algo que tenta iluminar causas e prevenir consequências. Tudo em preto e branco, exceto a capa. Como convêm.

20.05.2021

Capa do livro de Joe Sacco que lhe valeu o prêmio do American Book Award

Hoje o bônus é duplo. Primeiro, uma música do Pink Floyd. Song for Palestine (Canção para a Palestina) foi composta por Roger Waters, dando uma nova versão para We Must Overcome (Devemos Superar). Sua motivação para isso foi a presença de cerca de 1.500 homens e mulheres de 42 países, que em 2010 tentaram sem sucesso, a partir do Egito, se juntarem ao movimento Marcha da Liberdade em Gaza. Depois temos jovens palestinos apresentando a dabke, uma dança folclórica do Líbano, da Síria e da Palestina. Fazem isso próximo à divisa com Israel.