RAPHINHA, NÃO ESQUEÇA DA TINGA

Tudo bem, podemos entender a atitude como sendo apenas a defesa de um colega. Algo assim como um corporativismo, mesmo sabendo que a disputa interna em grupos selecionados para representar o país numa competição esportiva internacional muitas vezes torna o ambiente tóxico. Nem sempre, claro. Mas evidente que, real ou não, sempre é bom vender para consumo externo a imagem de uma coesão absoluta. Coisa assim como a Família Scolari, do Felipão, na Copa do Mundo disputada na Coréia e no Japão, em 2002. Entretanto, desta feita, caro Raphinha, teria sido melhor ficar calado.

Você é da Restinga, companheiro. Conheceu dificuldades naturais para os que não têm berço de ouro. E conseguiu se tornar atleta profissional de alto rendimento pelo seu esforço pessoal, perseverança e dedicação. Não tivemos oportunidade de ver seu talento em campo, aqui mesmo em Porto Alegre, nem no Grêmio nem no Internacional, mas isso foi babada dos gestores das categorias de base de ambos os clubes. No Avaí, de Florianópolis, no entanto, você recebeu oportunidade. De lá partiu para a Europa e a sua carreira só cresceu. A convocação para representar o Brasil na Copa do Mundo do Catar foi mais do que justa. Assim como também parecem ter sido quase todas – ficou difícil entender a presença de Daniel Alves, mas sempre é assim, com algum bruxo de todo treinador constando na relação final.

No primeiro jogo, talvez ainda pela pressão psicológica da estreia, a sua atuação não mereceu receber nota máxima. Acho mesmo que você não soube aproveitar pelo menos duas ótimas chances de gol, por exemplo. Mas isso acontece e apenas quem está tentando acertar alcança o direito de errar. Entretanto, outro erro e muito mais grave, você cometeu depois de sair do campo. Uma declaração infeliz, tomando as dores de Neymar, sinceramente não caiu bem. Sei que ele levou muita pancada, que saiu de campo machucado, que recebeu críticas duras de inúmeros torcedores e analistas, não ligadas à atuação. Dentro das quatro linhas, a reclamação de quase todo mundo sempre foi pela sua mania de cai-cai. Mas fora, ele abusa do teatro e da paciência de todos.

Neymar é uma figura pública. Uma das pessoas mais reconhecidas em todo o mundo, em termos de nome e visibilidade. Mas nunca fez nenhum uso positivo disso. Nunca defendeu causas sociais, nunca se preocupou de fato com questões raciais, sempre se lixou para tudo o que ocorria fora do seu mundinho. Poderia ter sido um ótimo exemplo e perdeu todas as oportunidades nesse sentido. Só não perdeu a extrema voracidade no que se refere a ganhar dinheiro. Quando foi para sair do Santos, por exemplo, Barcelona e Real Madrid o disputaram num verdadeiro leilão. E o que fizeram ele e seu pai, também seu empresário? Criaram uma empresa que vendeu para o Barcelona a prioridade do negócio. Daí, na hora do martelo ser batido, mesmo com a proposta madrilenha sendo maior para o clube santista, ele optou pelo outro. Porque recebeu uma fortuna muito maior do que aquela que já receberia pelo percentual da negociação. Ou seja, do total que o Barcelona desembolsou de fato, uma parte muito menor do que deveria veio para o clube brasileiro.

Fora esse “jeitinho”, ele ainda deixou de recolher valores devidos para a Receita Federal. Que terminaram sendo reduzidos quase a zero, por uma incrível coincidência pouco antes dele declarar seu apoio a Jair Bolsonaro. Um ídolo de pés de barro, mantido à custa de uma enorme estratégia de marketing que interessa também a meios de comunicação e a todos os anunciantes que se valem do prestígio do atleta em anúncios. Com uma imagem pessoal que se desgasta a cada dia, pelo menos diante das pessoas que enxergam o futebol e seu meio como algo que vai além do jogo, ele termina de fato recebendo “pedradas” que, às vezes, são mesmo exageradas e injustas. Com certeza, essas são minoria diante do total.

Dito isso, Raphinha, ele não precisava mesmo da sua defesa. O “menino Ney”, como tantos dos que o mimam o chamam, pode muito bem se defender sozinho. Ou pela sua claque. Olhe para o seu passado, ou para outros atletas que estão por perto e merecem esses sim a sua atenção, seu respeito. Ao seu lado mesmo, no comando do ataque da atual Seleção Brasileira, está Richarlison. Para você ter uma ideia, se é que não tinha mesmo nenhuma informação sobre isso, ele criou o Instituto Padre Roberto Lettieri para ajudar pacientes carentes com câncer, na cidade de Barretos, no interior de São Paulo. Mobilizou amigos e adquiriu a área onde foi instalado. O presidente defendido por interesse pelo seu amigo Neymar vetou integralmente um projeto de lei que facilitaria o acesso dos pacientes a remédios orais contra essa mesma e terrível doença.

O governo que está por desembarcar de Brasília incentiva queimadas e a devastação das florestas, faz vistas grossas ao garimpo ilegal e protege quem contrabandeia madeira e ouro para o exterior. Richarlison doou R$ 30 mil para uma ONG que monitora e protege onças no Pantanal. No momento em que faltou oxigênio para doentes em Manaus, as Forças Armadas não fizeram o esforço necessário para resolver o problema e Bolsonaro ficou imitando uma pessoa que se asfixiava, Richarlison comprou e enviou dez cilindros de oxigênio para a capital do Amazonas. Enquanto o governo fez de tudo para desacreditar a ciência e não comprar vacinas, o camisa nove da Seleção Brasileira se tornou um Embaixador da Ciência, na Universidade de São Paulo, entrando na campanha por recursos para desenvolvimento de medicamentos. Cerca de R$ 20 milhões foram arrecadados, ajudando em estudos de novas vacinas e respiradores.

Raphinha, se você deseja um exemplo mais próximo da sua realidade, não querendo considerar a proximidade no local ocupado em campo, lembro a você de Paulo César Fonseca do Nascimento. Este não por acaso ficou conhecido como Tinga. Jogou no Grêmio, no Botafogo e no Internacional, entre outros clubes. Leva no apelido o nome do bairro que viu vocês dois nascerem. Ele também tem nobres preocupações sociais. Junto com familiares, criou o “Projeto Fome de Aprender”, voltado para a distribuição de refeições e de livros para moradores de rua da nossa Capital. Comprou um ônibus que foi adaptado e, lá mesmo na Restinga, distribui mais de 200 marmitas todos os dias.

Foi triste, Raphinha, ouvir você dizer que “o maior erro da carreira de Neymar foi ele ter nascido brasileiro”. Você também disse que Cristiano Ronaldo e Messi recebiam apenas carinho de portugueses e argentinos. Talvez porque não tenha tempo de acompanhar os noticiários esportivos, ou saberia que ambos são sim muito criticados quando merecem. Na verdade, a diferença decorre do fato de merecerem muito menos que o brasileiro mimadinho, que nunca vai crescer. Particularmente, Raphinha, eu quero ver o Brasil chegar ao hexacampeonato e com você seguindo titular. Mas não escondo que perfeito mesmo seria conquistar esse título sem que o camisa dez voltasse a atuar. No atual momento, não estamos mais dependentes dele para alcançarmos a performance necessária em campo. Para vitórias fora dele, muito menos.

30.11.2022

O bônus musical de hoje é duplo. Primeiro temos Edvaldo Santana, com O Jogador. Depois, puxo um pouco a brasa para o meu assado e mostro a torcida do mais do que simpático Liverpool, da Inglaterra, cantando You’ll Never Walk Alone Ever (Você Nunca Vai Andar Sozinho), canção com a qual costuma homenagear seu time.

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AS NÁDEGAS QUE VALERAM UM TÍTULO

Campeonato Gaúcho de Futebol, ano de 1973. A competição está chegando ao final do primeiro turno e Grêmio e Internacional, como acontece quase sempre, estão em uma árdua disputa pela primeira colocação. Os colorados recebem o Esportivo, de Bento Gonçalves, então treinado pelo inesquecível Ênio Andrade, sofrendo uma derrota em pleno Beira-Rio.

Isso foi dia 15 de abril e faltava apenas um jogo para o Internacional concluir sua participação. Enfrentaria o Aimoré. O Grêmio liderava pelo saldo de gols, sete contra quatro. Ocorre que vários atletas estavam machucados e o time vermelho entraria em campo com desfalques consideráveis. Nas vésperas do confronto, o jornal Zero Hora publica, no espaço reservado ao chargista Marco Aurélio – na sua sala junto à redação havia uma placa na porta, onde se lia “Reduto dos Colorados” – uma fotografia. Isso mesmo: nem cartum, nem charge. Na imagem, captada através de uma janela entreaberta no vestiário do Internacional, estava o zagueiro chileno Elias Figueroa, de costas e despido.

O então presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Freire Hofmeister, ex-atleta e conselheiro do Internacional, se declara chocado com o fato. E, em nome da “moral e dos bons costumes”, transfere a partida contra a equipe de São Leopoldo, dando uma folga inesperada de 14 dias. Tempo suficiente para que os jogadores que estavam afastados se recuperassem. Na nova data, vitória colorada por 4×0 e o título simbólico do turno por um gol de diferença. No final da competição o pentacampeonato alvirrubro veio também por critérios de desempate.

Outra consequência da decisão do presidente da FGF foi o afastamento de todos os clubes gaúchos dos concursos da Loteria Esportiva, na época o único grande jogo de apostas no Brasil, além da tradicional Loteria Federal. Na verdade, o Rio Grande do Sul também tinha a sua Loteria Estadual, mas essas duas eram por números sorteados e não por desempenho, como aquela baseada em resultados esportivos. Isso perdurou por várias semanas, sem seu acesso a valores pela cedência de seus nomes.

Usando o título de um conhecido filme, que fez sucesso na mesma época e que era baseado em peça teatral escrita por Nelson Rodrigues, se pode afirmar que o futebol gaúcho viveu uma situação inversa. Em Toda a Nudez Será Castigada, dirigido por Arnaldo Jabor, o viúvo conservador e muito religioso Herculano se apaixona pela prostituta Geni, que lhe foi apresentada pelo irmão que estava preocupado com sua situação depressiva, depois da morte da esposa. O que gera uma situação terrível para os padrões de sua família, repleta de beatas, de tias faladeiras e com seu filho homossexual. Em Porto Alegre uma única nudez, que pode ter sido exposta propositalmente, não sofreu castigo: foi muito beneficiada. Ou benéfica, para ser mais preciso. Mas apenas para um lado.

Provavelmente tenha sido a única vez na história que nádegas decidiram um campeonato de futebol, em todo o mundo. E não porque uma bola chutada tenha sido acidentalmente desviada por essa região anatômica, indo se aninhar nas redes da equipe contrária. O “gol” foi marcado no vestiário mesmo.

10.06.2022

Estudo de Homem Nu (1877), de August Jerndorff

O bônus de hoje é a música Nádegas a Declarar, de Gabriel o Pensador.