A LÍNGUA, O PÉ, A BARRIGA E O BRAÇO

Sou apaixonado por expressões linguísticas. Aquelas frases que adquirem um significado muito diferente do que os oferecidos pelas palavras que as compõem, caso consideradas isoladamente. Elas são repletas de traços culturais e na maioria das vezes datam épocas e identificam regiões, costumes. São, portanto, demonstrativos de toda uma riqueza cultural. Elas não são ditos populares, porque esses últimos carregam uma conotação moral, uma tentativa de ensinamento (Aqui se faz, aqui se paga). Nem tampouco são como as comparativas, típicas no Rio Grande do Sul (Feliz que nem lambari de sanga). As expressões apenas corrompem o contexto usual, demonstrando a força do idioma.

Hoje cito aqui quatro – ou cinco – delas, que adotam partes anatômicas do corpo humano. A primeira, confesso que nova para mim, mas que apanhei por empréstimo de um texto nordestino. Falo de pagar língua, que significa fazer uma afirmação qualquer, falar alguma coisa e ser pego depois por essa mesma afirmação. Algo como criticar uma postura e terminar adotando ou suportando a mesma; dizer que um vizinho não sabe educar seus filhos e ser surpreendido por atitude igual de um dos seus. Ou um falso moralista que é pego fazendo a coisa que condenava. Já que citei antes os ditados, pode ser o equivalente a um deles: A língua é o chicote do corpo. Um alerta para a imprevisibilidade dos acontecimentos desse nosso mundo, de que é muito perigoso sermos assertivos contra outras pessoas ou opiniões.

Também quero incluir ao pé da letra, sendo que isso não corresponde às serifas que existem em certas fontes que se usa para impressão. Até porque pode ser algo verbal apenas e não impresso ou sequer escrito. Refere o que é exato, preciso, literal. Um modo de interpretação que corresponde ao que tentou ser posto pelo emissor da mensagem, que conseguiu seu objetivo sem qualquer margem de erro ou entendimento equivocado. Com isso sonha quem escreve e quem comenta: que os seus leitores e ouvintes percebam com clareza aquilo que se tentou dizer. O que, convenhamos, não é tarefa fácil. Outro dia prometo falar sobre ficar com o pé que é um leque.

Depois de ter pulado da língua, que estava quietinha lá dentro da boca, até o pé, dou meia volta e paro um instante na barriga, antes de chegar aos braços e ao seu aconchego. Tem barriga fria quem revela um segredo, não sabe segurar uma informação até a hora certa. Sempre lembro da minha filha, quando pequena: todas as segundas-feiras que antecediam o segundo domingo de agosto, ela chegava da escolinha e me contava que durante a semana iriam preparar uma surpresa para os pais, para o dia a eles dedicado. A ansiedade crescia até a sexta, quando ela trazia e já me alcançava cartão e algum presente, porque não suportaria esperar mais 48 horas. O que não era nada ruim para mim, que usufruía daquela atenção e carinho por um tempo muito maior. Ainda sobre essa parte da nossa anatomia, eu poderia ter optado por ter o rei na barriga. Se não for uma soberana grávida, é aquela pessoa que se acha, que dá a si mesma um valor que certamente não tem ou não merece.

Concluo com dar (ou não) o braço a torcer. Essa pode ser usada por quem admite que estava errado e volta atrás, em afirmação, alguma opinião emitida, ideia ou ponto de vista que defendia antes, ou quem nunca aceita a possibilidade de estar errado. O que também me lembra um familiar: meu avô Ulysses Gusmão da Cunha. Era engraçado, porque quando a gente provava que ele estava errado em algo, ele concordava conosco e com a prova, antes de reafirmar a mesma posição anterior. O interessante dessa expressão é que ela atende duas pontas, a que cede e a que não cede; a que enxerga e a que não enxerga algum detalhe da realidade. Algo muito apropriado na política atual, por exemplo.

Mas, nossa língua tem valor e não tem preço, as letras não caminham nem correm – exceto nesses letreiros luminosos de publicidade –, barriga fria não é hipotermia e quem dá o braço a torcer não é masoquista. Por tudo isso, acredito eu, o idioma deve ser um tormento para tradutores menos experientes.

28.03.2022

O bônus de hoje é Não Dou o Braço a Torcer, música do grupo Saco de Ratos. Ele é paulistano, composto por Itamar Assumpção, Felipe Rocha e Mário Bortolotto. Suas letras são consideradas “poeticamente cruas e bêbadas”, sendo as canções tocadas por duas guitarras agressivas que se completam, junto com uma “cozinha rítmica e pulsante”. Costumam retratar a boemia da cidade onde moram.

DICA DE LEITURA

Hoje quero indicar aos meus amigos e amigas uma publicação de fato primorosa. Ela está em oferta de pré venda, na Amazon, por um preço muito em conta. É o livro A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA DOS NOSSOS SENTIMENTOS. Trata-se de uma graphic novel, apresentada em capa dura, com acabamento fosco e 148 páginas coloridas em papel couché de alta gramatura. Uma obra com apresentação e conteúdo. O roteiro é do premiado escritor belga Zidrou, com os desenhos feitos pela talentosa artista holandesa Aimée de Jongh. Esses são tidos como os quadrinhos europeus mais aguardados do ano.

São personagens Ulisses e Mediterrânea. Ele tem 59 anos, sendo um viúvo que se vê sem rumo e engolido pela solidão. Ela sofre com a morte de sua mãe. De repente, suas rugas parecem mais perceptíveis, as palavras alheias machucam e a idade pesa em seus ombros. Os dois passam seus dias envoltos em melancolia, enquanto tentam fazer as pazes com a realidade. Até que em determinado momento seus mundos se encontram e isso resulta num turbilhão de novas emoções.

Mais do que recomendo. Lembrando que basta clicar sobre a imagem da capa do livro, que está acima, para ser direcionado para a possibilidade de aquisição. Se isso for feito através desse link, o blog será comissionado.

ZIQUIZIRA E BALACOBACO

Tem algumas palavras que a gente gosta sem nem ao menos saber o seu significado. Pelo menos comigo é assim. Sou pego pela sonoridade, como se algo mágico entrasse pelos meus ouvidos e sensibilizasse determinados neurônios. Sei lá se é isso, mas poderia ser. Ziquizira é um bom exemplo. A palavra me parece quase dançante, muito alegre, festiva. Daí fui pesquisar a sua origem e o único idioma no qual encontrei sua presença, além do português, foi no urdu, uma língua indo-europeia da família indo-ariana, bastante antiga, surgida a partir das influências turca, persa e árabe, no sul da Ásia. Veio de longe, portanto.

Em urdu ziquizira é simplesmente “desfazer”. Aqui, fizeram uma injustiça com ela. Trata-se de um substantivo feminino que designa má sorte, azar, urucubaca – essa última, outra que sempre me foi agradável. Tem uma variação, na qual se troca a letra Q pelo G, ficando ziguizira. Mas não troca de significado. Melhor seria se fosse mesmo uma dança, como sempre me pareceu. Mas, como não há nada que não possa ser piorado, esse também é o nome popularmente atribuído a uma doença de pele, em algumas regiões do Brasil.

E balacobaco, então. Como não gostar de balacobaco? Dessa vez me dei bem, pois ela designa momento de alegria, diversão animada com bebida. Veio de Zimbábue, um país africano, onde significa “meu amigo” ou “meu velho”. Agora, para obter sucesso de fato num balacobaco, melhor mesmo é ter borogodó. Esse é um atrativo pessoal irresistível, que pode ser físico ou de outra origem, como carisma. Ou seja, como não tenho nenhuma chance, em quaisquer das duas hipóteses, saio de fininho desta palavra e procuro outra.

Sarcófago, por exemplo. Para mim não parece fúnebre, mas é bastante solene. E anacrônico, então. Poderia ser um elogio para um(a) cronista talentoso(a), se não significasse “aquilo ou aquele que está em desacordo com os usos e costumes de uma época”. Ou seja, o dicionário sempre esclarece, mas tira toda a possibilidade de criatividade. Também não existe poesia nos dicionários, exceto a palavra em si, que é um dos verbetes bem procurados na letra “P”. Com essa mesma inicial tem peremptório, que é muito bom. Tão bom que significa algo definitivo, decisivo.

Quando eu era pequeno, tanto tempo atrás que ainda existia o que chamavam de Curso Primário, todos ficávamos impressionados com a palavra da língua portuguesa que se imaginava ter o número de letras. São 27, em inconstitucionalissimamente. Essa, evidente, não merece estar entre as prediletas. Lembrei dela pela excentricidade. Depois inclusive descobri que tem 46, aquela que de fato é a maior dicionarizada em Português: pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico. Então, tratei de buscar as também muito longas em outros idiomas. Pasmem! Em alemão tem uma com 80, em sueco outra com 130. E a recordista mundial é em grego, com 182 letras. Esse desperdício todo, lá na Grécia, identifica uma comida. Haja apetite! Mais uma vez o português ficou para trás.

Tem ainda muitas que parecem ser uma coisa e são outra. Equidade não é a certidão de nascimento de um equino, mas tem a garbosidade de um puro sangue. Patavinas não refere a ave fêmea da família Anatidae (cuidado para não confundir com marreco, que hoje isso é politicamente perigoso). Justaposição não é o lugar que você acha que merece ocupar, na vida em sociedade. E acabo de me dar conta da possível razão dos pentecostais seguirem Bolsonaro cegamente: eles devem achar que democracia é um sistema de governo liderado pelo demônio, sendo importante combater isso. Deu exatamente o contrário, mas quem sabe um dia eles abrem os olhos?

Voltando para as palavras que podem ser cativantes por si: arapuca parece ser muito mais do que uma armadilha indígena para pegar pequenas aves e roedores. Sugere uma exclamação, denotando surpresa. Talvez seja uma antepassada da interjeição bem gaúcha a la pucha? Em uma publicidade antiga na televisão, uma criança brasileira falava “almôndegas” para um italiano, que dizia ficar com medo da expressão. Por lá esse prato é chamado de polpetas, algo mais simples. Minha lista seria quase interminável, mas me deixem acrescentar mais umas poucas: saracotear, bambolê, sincrônico, hipotenusa, simetria, lambisgóia, prelúdio, quitanda e songa monga – essa na verdade foi reduzida hoje em dia para apenas a primeira parte, sem perder o sentido completo.

De outras tantas palavras gosto pelo que elas significam de fato. Como liberdade, amor, gratidão, reconhecimento… Veja que essa última forma de fato uma base sólida, feita com a liga entre o respeito e a humildade. Aliás, a base de qualquer cultura é a língua, o idioma. Razão pela qual eu fico muito indignado quando vejo o anglicanismo invadindo nosso território, não como um acréscimo normal, que sempre ocorreu e ocorre em todos os lugares, por assimilação. Mas sendo uma ação pensada, domesticadora, colonialista. “Os limites da minha língua são os limites do meu mundo”, afirmou o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Eu adoro expandir os meus.

10.12.2021

No bônus musical de hoje, a muito apropriada Palavras ao Vento, uma composição de Marisa Monte e Moraes Moreira, na voz de Cássia Eller.