COMPAIXÃO EM PLENO VOO

Charlie Brown é um dos personagens das tirinhas e do desenho animado Peanuts, uma criação de Charles Schulz. Faz parte de uma turma que tem ainda outros personagens, como o cãozinho Snoopy, Linus e Lucy van Pelt. Ele é um menino determinado e de uma esperança infinita, mas é contraditório por ao mesmo tempo ser dominado por uma considerável insegurança e ter má sorte. Os seus primeiros episódios foram lançados em 03 de novembro de 1950. Ou seja, amanhã estarão completando 72 anos. Mas quero hoje escrever aqui sobre um outro Charlie Brown, esse um homem de carne e osso, com muita sorte.

Esse segundo era piloto de um avião B17, aquele que é conhecido como Fortaleza Voadora, integrando o 379º Grupo de Bombardeiros, lotado em Kimbolton, Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial. Seu avião tinha o apelido de Ye Olde Pub, sendo um dos que decolaram em missão no dia 20 de dezembro de 1943. Ele era segundo-tenente e tinha apenas 21 anos. Seu alvo era uma fábrica de aeronaves que ficava próximo da cidade alemã de Bremen, às margens do rio Weser. Contra si havia o fato de a força aérea norte-americana não dispor ainda de caças com autonomia para acompanhar os bombardeiros, quando as distâncias que precisavam ser percorridas eram maiores. Assim, a única defesa dos 21 que partiram naquela manhã eram as suas próprias metralhadoras, com as quais tentariam abater os inimigos que viessem interceptá-los.

A tal fábrica tinha uma defesa extraordinária, pela importância estratégica que tinha no conflito. Nada menos do que 250 canhões antiaéreos e um número não determinado de caças da Luftwaffe. Mesmo assim, o grupo conseguiu se aproximar sem maiores dificuldades até cerca de 30 milhas do seu alvo. Então, surgiram os problemas, que não foram poucos. As explosões provocadas pela artilharia pintavam todo o céu à sua frente. E mais de um dos disparos atingiram o avião de Charlie, que ficou avariado e saiu da formação de ataque. O motor dois acabou danificado e o quatro foi destruído. O nariz foi arrancado e a cauda também não estava mais inteira.

A providência tomada foi descarregar ali mesmo as três toneladas de bombas, para ficar mais leve a ter maior velocidade para a fuga. Seus companheiros já haviam concluído o ataque, pouco importando com que grau de sucesso, partindo em retirada. O Ye Olde Pub ficou para trás, sozinho e presa mais do que fácil. Alcançado por caças, o bombardeiro seguiu sendo atingido: muitos furos se espalhando em toda a fuselagem e seus atiradores mortos ou feridos, fora de combate. O rádio foi destruído e os sistemas hidráulico, elétrico e de oxigênio avariados. Ou seja, apenas por milagre ele seguia voando.

Charlie também foi ferido e desmaiou por alguns instantes, com o avião despencando na direção do solo. Mas, esse detalhe fez com que seus inimigos acreditassem que ele estava em queda, se afastando. Antes do impacto, o piloto conseguiu retomar o controle e seguiu voando baixo, agora tentando a direção da Inglaterra. Então, novo problema: passou muito perto de um campo de aviação da Alemanha, onde tinham acabado de abastecer um mortal Messerschmitt BF109, armado com uma metralhadora ponto 50. Ludwig Franz Stigler tinha um excelente currículo, faltando apenas abater mais um inimigo para ser agraciado com a cobiçada Cruz de Cavaleiro. Por isso, decolou prontamente e foi na perseguição da B17.

Quando o alvo foi alcançado, o alemão se deparou com uma cena de fato devastadora. Seu inimigo não passava de uma carcaça voadora. Lembrou então de seu instrutor, na academia, dizer que jamais se atira num paraquedista. E que regras, mesmo na guerra, são formas de se manter um mínimo de humanidade. Vendo que a fragilidade do inimigo era como a de quem já saltou de um avião em queda, não atirou. Passou a voar em formação e a fazer sinais para que pousassem. Como não foi obedecido, resolveu então guiá-los até fora do espaço aéreo alemão. Despediram-se com uma saudação e cada um seguiu seu rumo. Stigler jamais pode contar o que fizera, exceto para sua esposa, para evitar uma corte marcial. Surpreendentemente o B17 completou seu retorno, voando ainda mais de 500 quilômetros. Ao contar o que tinha acontecido, Charlie foi orientado a ocultar o fato.

Numa época na qual, especialmente aqui no Brasil, adversários são encarados como inimigos, se torna bem apropriado lembrar dessa história real, na qual um inimigo teve uma postura ética e moral de fato irrepreensível. E, por incrível que pareça, essa atitude nobre foi decisão de um homem que, na ocasião em que ela foi tomada, integrava um grupo militar movido pela mesma ideologia que agora está impregnando nosso país, com ódio, desprezo à vida e toda sorte de preconceito.

Esses dois pilotos nunca ficaram sabendo o que acontecera com o outro, depois daquele dia. Até que, em 1989, Charlie decidiu escrever para uma publicação que congregava pilotos alemães, a Jäger Blatt (algo como Folha do Caçador). E Stigler a leu, respondendo imediatamente. Depois de várias trocas de mensagens, eles se reencontraram pessoalmente em junho de 1990. E a história terminou sendo contada em detalhes no livro escrito por Adam Makos e Larry Alexander. “Eu não senti que seria certo abater homens tão corajosos e em situação de tamanha desvantagem. Eles estavam desesperadamente tentando chegar em casa e não seria eu que iria impedi-los de conseguir isso”, revela o alemão em um trecho. A noite de Natal, acontecida apenas quatro dias depois daquele encontro nos céus da Alemanha, quando a compaixão falou mais alto, certamente foi, se não de felicidade plena devido à guerra, de um grande alívio para os corações de todos os envolvidos.

02.11.2022

Imagem ilustrativa de um B17 – Fortaleza Voadora

O bônus de hoje é outra vez duplo, com duas músicas da banda Charlie Brown Jr. Primeiro temos Só os Loucos Sabem, seguido de Zóio de Lula. O grupo de rock surgiu em Santos, no ano de 1992. Era formado por Chorão, Champignon, Marcão Britto, Thiago Castanho e Renato Pelado. Manteve-se em atividade até 2013, tendo lançado dez álbuns gravados em estúdio, três gravados ao vivo e sete DVDs.

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O BEM E O MAL

Não há bem – deve valer também para o bom – que nunca se acabe, pensei eu enquanto saboreava o último pedaço do chocolate. Mas também não há mal que dure para sempre, asseguravam minha avó e minha mãe, o que me dá um alento sobre assuntos muito maiores e mais sérios. Essa pandemia ainda termina e o pandemônio vai cair, seja nas urnas ou na marra. Tenho certeza que ainda volto sem medo – porque esse ainda existe, devido às variantes do vírus – para o Brique da Redenção, para as salas de cinema, ao Araújo Vianna, ao convívio com amigos e à Arena do Grêmio. Algumas dessas coisas já tenho feito, mas ressabiado. Um dia volto a usar meu moletom verde, com detalhes amarelos, sem ser confundido. Espero fazer isso tão logo volte a amada “meia estação”, me afastando de vez destes 40 graus registrados recentemente. E a esperança vai voltar a sorrir nesse nosso país, substituindo a vergonha e a infâmia reinantes.

As noções do bem e do mal são basicamente ligadas à filosofia e à ética, tendo sido apropriadas pelas religiões. São uma derivação dualista das avaliações dos comportamentos e dos desejos humanos. Um dos seus sentidos apontaria para o lado dito “certo”, enquanto o outro para o que seja “errado”. Obviamente são subjetivos ambos os conceitos, se sobre ele nos debruçamos com um olhar de moralidade. Até porque a noção do que seja moralmente aceito varia em função do tempo e em razão das distâncias geográficas e culturais. A moral vigente no Rio de Janeiro dos tempos coloniais e hoje, na mesma cidade, não é a mesma. A moral nos dias atuais em São Paulo ou Porto Alegre, difere muito da aceita em alguma localidade pequena no interior do Piauí. Ou em países da África ou do Oriente Médio. Essa flutuação não acontece de modo igual, quando se vislumbra o aspecto ético. Esse é mais perene, ligado à vida e conceitos que superam os simples costumes. 

Bolsonaro, avaliado pelo tempo e pela história, sempre será um asco, uma excrescência, um lamentável acidente de percurso. Uma espécie de encarnação do mal. Pouco irá importar onde e quando a leitura sobre seu comportamento seja feita, desde que a análise ocorra sob a luz da razão. O que exclui a boiada, aqueles pseudo-religiosos cegos, os que lucram muito com as suas ações tresloucadas, fascistas e milicianos em geral. Mas a figura serve como um excelente exemplo para citações e estudos. Eu mesmo tive que me policiar para deixar de chamá-lo de louco. Os doentes mentais não mereciam isso. Na verdade, ele é apenas mau. E sádico, muito sádico mesmo.

O filósofo grego Aristóteles chamava de malvada a pessoa que, agindo de forma voluntária, adquire vício e hábito, através de excessos ou de faltas, não se importando se atinge ou abandona os demais para a realização dos seus prazeres. Tipo passear de moto ou jet ski enquanto uma calamidade climática está causando inúmeras mortes. Ou andar sem máscara em meio a multidões, no auge de uma pandemia, mesmo sabendo que esse comportamento estimulará contaminações e vai causar perda de vidas.

Platão dizia que o que definia o mal era a dor, tudo aquilo que causava sofrimento ao ser humano. E seu oposto seria a sensação de felicidade, trazida pelas maravilhas da vida. Se opondo à vida, portanto, o mal seria o equivalente à morte. O mal faz arminhas com os dedos, diz que não é coveiro, desdenha de minorias, imita uma pessoa que está se asfixiando e cai na risada ao fazer isso. O mal, portanto, é a psicopatia que impede o colocar-se no lugar do outro, o compreender a dor que não seja sua. Convém lembrar que a palavra mal se origina do termo latino malu, se referindo ao que não deve ser nunca desejado ou precisa ser afastado, eliminado. O que explica facilmente o “Fora Bolsonaro!”. O mal, portanto, é a simples oposição à virtude.

Nietzsche via a vida como um impulso, então o mal seria aquilo que nega essa centelha vital. O bem é a identificação do que é nobre; o mal tudo que é torpe. Simplificando, a diferença entre respeitar a diversidade e afirmar que preferiria ver um filho seu morto se descobrisse ser ele um homossexual. Ou se ele quisesse casar com uma negra. Analisando de um ponto de vista religioso, mas sem cobrança de dízimo, o bem seria expressão do divino e o mal um dos frutos da negação de Deus. Mateus, em seu evangelho (15:11), vai além e destaca que aquilo que contamina de fato um homem não é o que lhe entra pela boca. E afirma que o mal é o que sai da boca do homem. Como discurso difundido em cercadinho e em redes sociais, para atacar quem seja adversário ou simplesmente um ser pensante. Enfim, o bem ama a natureza e o mal desmata; o bem deseja a paz e o mal só sobrevive no conflito. O bem combate a desigualdade social; e o mal faz de tudo para que ela se acentue. Agora, o melhor de tudo isso, uma vez que se passe a compreender melhor a realidade, está na percepção de que a gente pode escolher entre um e outro. E que até quem já fez em algum momento a escolha errada, sempre tem chance para se redimir. No dia-a-dia da vida ou naquele momento sagrado, diante da urna eletrônica. Que não por acaso é odiada por quem ama o mal.

08.03.2022

O bônus de hoje é o áudio da música O Mal é o Que Sai da Boca do Homem, de Pepeu Gomes, com o próprio. Ele é um guitarrista, cantor e compositor baiano.

DICA DE LEITURA

Clássico contemporâneo dos quadrinhos, Maus é um relato comovente sobre Auschwitz e um acerto de contas do artista com o pai. Única história em quadrinhos a receber o Prêmio Pulitzer.

Maus (“rato”, em alemão) é a história de Vladek Spiegelman, judeu polonês que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, narrada por ele próprio ao filho Art. O livro é considerado um clássico contemporâneo das histórias em quadrinhos. Foi publicado em duas partes, a primeira em 1986 e a segunda em 1991. No ano seguinte, o livro ganhou o prestigioso Prêmio Pulitzer de literatura.


A obra é um sucesso estrondoso de público e de crítica. Desde que foi lançada, tem sido objeto de estudos e análises de especialistas de diversas áreas – história, literatura, artes e psicologia. Em nova tradução, o livro é agora relançado com as duas partes reunidas num só volume.
Nas tiras, os judeus são desenhados como ratos e os nazistas ganham feições de gatos; poloneses não-judeus são porcos e americanos, cachorros. Esse recurso, aliado à ausência de cor dos quadrinhos, reflete o espírito do livro: trata-se de um relato incisivo e perturbador, que evidencia a brutalidade da catástrofe do Holocausto.


Spiegelman, porém, evita o sentimentalismo e interrompe algumas vezes a narrativa para dar espaço a dúvidas e inquietações. É implacável com o protagonista, seu próprio pai, retratado como valoroso e destemido, mas também como sovina, racista e mesquinho. De vários pontos de vista, uma obra sem equivalente no universo dos quadrinhos e um relato histórico de valor inestimável.

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