MAIS EXPRESSÕES ORIGINADAS NA ESCRAVIDÃO

Alguns dias atrás publiquei aqui quatro expressões popularmente aceitas que, na realidade, tiveram sua origem no vergonhoso período no qual se teve escravidão no Brasil. Hoje apresento mais quatro delas, lembrando que uma das razões do seu uso não ser condenado vem do fato de que a maioria das pessoas desconhece como elas surgiram.

Tem caroço nesse angu – Essa expressão é usada quando se quer dizer que há algo errado, suspeito, que as coisas não são de fato aquilo que estão parecendo ser. Ela surgiu porque os negros escravizados recebiam como alimento, nas refeições, apenas um prato de angu de fubá, que é uma espécie de polenta. Mas as escravas que lhes traziam os pratos uma vez por outra conseguiam esconder nacos de carne ou pedaços de torresmo no meio. Quando os proprietários suspeitavam que isso estaria acontecendo, usavam a frase que até hoje é conhecida e utilizada.

Para inglês ver – No ano de 1830 a Inglaterra exigiu que o Brasil não mais realizasse tráfico de negros, que eram trazidos a força da África como escravizados. Potência mundial daquela época, o país europeu queria que nosso país elaborasse leis que coibissem a prática. Fizeram isso não por serem “bonzinhos”, mas porque os traficantes prejudicavam seus interesses na costa ocidental africana. O seu desejo foi acatado, mas apenas no papel. Todos os brasileiros sabiam que a tal lei simplesmente não seria cumprida, o que acontece até hoje com muito texto legal por aqui. Assim, surgiu a expressão, que significa algo para enganar terceiros e a opinião pública, que não tem valor real.

Encher o bucho – Nas minas, onde a mão de obra escrava era utilizada amplamente, esses trabalhadores tinham diante de si um buraco que era escavado na parede, conhecido como “bucho”. E lhes era exigido que tal espaço fosse preenchido com ouro que encontrassem, antes de estarem liberados para receber seu quinhão de comida. Ou seja, só eram de fato alimentados com uma tigela de ração aqueles que atingissem a cota. Hoje a expressão tem uma conotação praticamente oposta, pois “encher o bucho” é aplicado quando se come em demasia, quando a pessoa se alimenta fartamente, se empanturra.

Espírito de porco – Há quem atribua a origem dessa expressão a certos preceitos religiosos. Isso porque tais animais têm sua imagem associada com falta de higiene, que por sua vez remete para impureza, sujeira. No fundo era quase isso, só que com algumas diferenças de ordem cultural. Começou a ser usada quando muitos escravos se recusavam a sacrificar os porcos para que servissem de alimento. Só faziam após ameaçados por castigos severos. E a recusa vinha de costumes africanos, onde crenças ancestrais diziam que o espírito do animal morto permaneceria no corpo daquele que o abatesse, pelo resto da vida, alterando o seu comportamento. Também se somava a isso, como agravante, o choro do porco que remete a um ruído semelhante a um lamento humano. No sentido atual, se refere a quem age de forma desagradável e irritante, sem levar em consideração as demais pessoas.

11.09.2021

Como bônus temos Baba Yetu (Pai Nosso), uma canção/prece no idioma africano Swahili. Ele é adotado como uma das línguas oficiais no Quênia, na Tanzânia e em Uganda. Mas também é muito comum em toda a região litorânea que vai do sul da Somália até Moçambique, incluindo Burundi, Ruanda, Zâmbia, República Democrática do Congo e na parte sul da Etiópia. Essa apresentação foi no País de Gales, em 2017, durante um festival internacional de música. A direção é de Christopher Tin, com apresentação de Joel Virgel, Nominjin e o Welsh National. O hit foi ganhador de um prêmio Grammy.

Quem não leu a postagem semelhante feita aqui no virtualidades.blog, que trazia os quatro primeiros ditados, pode fazer isso agora clicando sobre o título dado ao texto, dentro do bloco abaixo.

Recomendo também a leitura do texto que publiquei em 10 de setembro de 2020, com o título Um Atentado Covarde. Ele faz referência a fato histórico que foi uma agressão contra a democracia e custou muitas vidas. Para isso, basta clicar sobre o título, no bloco abaixo.

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O FRUTO CAIU LONGE DO PÉ

Essa história de “tal pai, tal filho” nem sempre é verdadeira. Acreditem em mim, pois tenho agora uma prova cabal, definitiva. A vida toda preferi seguir aquele outro ditado, que afirma nunca cair o fruto longe do pé, mas eu estava errado, lamentavelmente. Se antes poderia haver até uma suspeita disso não ser real, como de resto correm o mesmo risco todas as verdades definitivas, agora foi escancarado mais esse meu equívoco. Quem manda eu me basear na minha vida familiar, nas minhas experiências pessoais, onde tive a sorte de não causar nem enfrentar tais dissabores?

O jornalista e poeta Oswaldo de Camargo está com 84 anos. Ele é neto de escravos e filho de pais analfabetos. Deve ter tido, ao longo de toda a sua existência, momentos e motivos para ficar feliz e na certa enfrentou muito mais tristezas. Sempre foi um militante do Movimento Negro e agora, finalmente, tem sua trajetória reconhecida na cidade natal. Bragança Paulista, com 170 mil habitantes, no interior de São Paulo, deu seu nome a uma praça. Ao saber disso, não teve como deixar de lembrar da própria infância, que foi sofrida. Perdera pai e mãe tão cedo que, com seis anos de idade, vivia no Preventório Imaculada Conceição, local que recebia e amparava filhos de tuberculosos. Ele admite que, apesar da enorme tragédia familiar, foi esse local que lhe permitiu fugir de uma vida miserável, receber educação e se tornar um escritor. Segundo ele conta, foi lá que escapou de ser mais um entre tantos “herdeiros do analfabetismo”.

Ele agarrou a chance oferecida. Aprendeu a ler e escrever, indo depois muito mais além. Esteve no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto. Por lá foi apresentado aos poetas parnasianos. Depois, se apaixonou pela obra de Carlos Drummond de Andrade. Ao sair, foi revisor de O Estado de São Paulo; redator e resenhista literário no antigo Jornal da Tarde. Em 1959, lançou seu primeiro livro, estreando na literatura pela poesia. Um Homem Tenta Ser Anjo veio três anos antes de se tornar debutante na prosa, com O Carro do Êxito. Nesse segundo estava o conto Negro Disfarce, que depois foi transformado por ele em novela e também publicado. Em 1978, Oswaldo fez parte da primeira edição dos Cadernos Negros. Essa foi uma publicação histórica que reuniu jovens estudantes e intelectuais, todos eles negros. Em comum tinham a coragem de empreender uma resistência pacífica contra a ditadura militar.

Ele permaneceu ao longo de décadas sempre fiel aos seus princípios, empenhado numa luta tão inglória quanto justa, pelo reconhecimento dos direitos dos negros, pelo respeito à sua história. Era uma espécie de “elo entre as gerações” que se sucederam no mesmo enfrentamento. Agora em 2021, além da homenagem citada, ele terá algumas de suas obras outra vez publicadas: a Companhia das Letras irá relançar 15 Poemas Negros, de 1961 – esse com prefácio de Florestan Fernandes –; a novela A Descoberta do Frio, de 1979;  e também o já citado O Carro do Êxito. Oswaldo é um homem íntegro, inteiro em todos os sentidos. Alguém com princípios. Casado com dona Florenice, eles tiveram seis filhos.

Um desses filhos chama-se Sérgio Camargo – ele se apresenta assim, sem o “de” – que preside a Fundação Palmares. Essa instituição pública foi criada em 22 de agosto de 1988, pelo Governo Federal, para dar a sustentação possível a tudo o que o Movimento Negro vinha fazendo, ao longo do tempo. Está voltada para a “promoção e preservação de valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra, na formação da sociedade brasileira”. É o que diz no seu estatuto; não é o que faz Sérgio. Uma das suas tantas proezas foi chamar de “escória maldita” o movimento no qual seu pai milita por décadas. Muito atuante, mas apenas nas redes sociais, bem ao estilo que identifica a imensa maioria dos bolsonaristas, suas postagens são um espetáculo de horrores, ódio e ofensas. Ele nega a existência de racismo no Brasil; ofende a religiosidade de matriz africana; relativiza a escravidão, afirmando que ela foi benéfica para os filhos dos escravos; defende a extinção do Dia da Consciência Negra; contesta a atuação de mulheres negras na política; tudo isso de forma constante, intensa e gratuita.

Sérgio diz que o Movimento Negro é composto por “gente safada, todos de esquerda”; criou a expressão “afromimizentos” para se referir aos membros da comunidade negra que se posicionam contra suas falas e práticas discriminatórias. Pior é que, mais do que simples verborragia irresponsável e ignorante, o presidente da Fundação, que foi escolhido pessoalmente por Bolsonaro, está arrasando com a instituição. Persegue funcionários, destrói acervo, inviabiliza projetos. A diferença entre ele e seu pai é que o rebento irá sair do posto temporário que ocupa para o nada, o esquecimento absoluto que merece. Talvez com uma estadia antes na prisão. E seu pai, este estará imortalizado por tudo o que fez e ainda faz, também na Praça da Poesia Oswaldo de Camargo. Além disso, não se pode culpar a árvore pelo fato de um dos seus frutos ter, depois de caído, rolado para longe, onde apodreceu.

05.09.2021

Oswaldo de Camargo, jornalista e escritor. Foto de Larissa Souza – Ecoa/UOL

No bônus de hoje, Negra Li com a parceria de Rael, na música Raízes. A composição é da própria Negra Li, com Fábio Brazza, Duani e Vulto. Muito especiais os versos “Minha dor é de cativeiro/ A sua é de cotovelo/”.