600 MIL MORTOS

No dia de ontem o Brasil ultrapassou a casa dos 600 mil mortos pela Covid-19. Para ser preciso, com as 628 registradas ao longo de 24 horas já são 600.493 as vidas perdidas até agora. Isso que nos primeiros meses era enorme a subnotificação, o que nos permite assegurar com absoluta certeza que tal número foi alcançado bem antes. Sem contarmos com casos como o evidenciado no recente escândalo da Prevent Senior, que falsificava os atestados de óbitos de pacientes seus, para não admitir que as perdas tinham sido sofridas para essa doença. Afinal, isso desacreditaria sua absurda insistência em apregoar o uso de medicamentos sem eficácia alguma, numa pseudo pesquisa que tinha interesse econômico-financeiro, mas não científico.

Enfim, mesmo que tomemos como correto esse número inferior ao real, o absurdo toma dimensões inimagináveis. Para se ter uma ideia, há cerca um século atrás, na epidemia da chamada gripe espanhola – que começou nos EUA e não na Espanha –, ocorrida entre os anos de 1918 e 1919, as estimativas apontam que o Brasil tenha perdido cerca de 35 mil vidas. Percentualmente isso teria uma relevância maior do que se examinar apenas os números absolutos, porque é evidente que a população era menor. Mas também eram menores as nossas condições sanitárias e os recursos para prevenção e tratamento.

Na Guerra do Paraguai, quando Brasil, Uruguai e Argentina lutaram juntos contra o exército de Solano Lopes e massacraram o povo paraguaio, incentivados por interesses britânicos, o Império enviou 150 mil brasileiros para o campo de batalha. Após cinco anos de conflito, cerca de 50 mil deles não voltaram para casa. Com as mortes dos civis, especialmente nas províncias do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso, o número chegou a 60 mil. Dez por cento do que se perdeu com a atual pandemia, agora num período de tempo que foi menos do que a metade daquele. A Guerra dos Farrapos, que tanto orgulha os gaúchos, teve perto de três mil baixas, em dez anos de luta. O que comprova que foram embates de pouca “intensidade” e de narrativa maior. Na sua modesta participação na Segunda Guerra Mundial, o Brasil perdeu cerca de mil militares e mil civis, esses principalmente marinheiros nos nossos navios mercantes que foram afundados.

O Brasil possui 2,7% da população mundial, mas teve, até a atualização ocorrida em 06 de outubro de 2021, um total 9,1% entre todos os casos confirmados e 12,4% das mortes mundiais. Essa discrepância, causada em boa parte pela inoperância criminosa do Governo Federal, escancara uma situação sanitária que beira o absurdo. Estamos tendo, por exemplo, que comemorar o fato de a média móvel de mortos estar em “apenas” 457 vidas indo embora a cada dia. E isso aponta para a naturalização do fato das pessoas estarem morrendo: afinal, elas não têm rosto, a não ser quando é alguém que se conhece. No fundo, são apenas números numa estatística sombria.

Foi somente em 31 de julho que o Brasil voltou a registrar uma média móvel de mortes abaixo de mil casos por dia, isso depois de 191 dias seguidos com valores superiores. Entre 17 de março e 10 de maio, tivemos mais de 2.000 mortos a cada 24 horas. O recorde ainda pertence a 12 de abril, quando 3.125 brasileiros perderam a vida. Ao longo deste tempo todo, negócios escusos eram combinados por dois grupos distintos de apoiadores de Bolsonaro, dentro do Ministério da Saúde e com o conhecimento dele, numa queda de braço para saber quem ficaria com a propina que estava sendo cobrada para a aquisição de vacinas.

Um governo que se recusou a adquiri-las ainda no ano passado, quando 70 milhões que seriam entregues em dezembro foram simplesmente dispensadas. Que não forneceu transporte de oxigênio para Manaus e outras cidades, permitindo que pessoas morressem asfixiadas – aviões da FAB tinham ido levar militares para treinamento fora do Brasil. Que tornou uma questão de honra negar sempre a ciência, propagar fake news, defender um inexistente tratamento precoce. Um governo liderado por um presidente que debochou das pessoas doentes, imitando uma delas passando mal, diante das câmaras.

O que Bolsonaro esqueceu de considerar foi que não morreram apenas opositores seus. Que milhares entre os mortos eram seus eleitores. Que todos os que se foram deixaram para atrás algum familiar que vota. Perder alguém que se ama é sempre algo muito doloroso. Mas, a essa altura, o que podemos fazer é não perder a memória. É levarmos essa mesma dor junto conosco até as urnas, nas eleições do próximo ano. E não esquecermos, até isso acontecer, de seguir usando máscara e álcool gel, além de manter o distanciamento social. Depois, nos distanciaremos também do genocida.

09.10.2021

No bônus de hoje, Dust in the Wind (Poeira ao Vento), música da banda Kansas. A gravação original é de 1977, sendo uma das faixas do álbum Point Of Know Return. Mas também foram feitas algumas outras, como as de Sarah Brightman (1998) e Scorpions (2001). O vídeo tem legendas em português.

FRUTAS ALCOOLIZADAS

Claro que eu já tinha ouvido falar das tais “peras bêbadas”. Sei que é um doce feito com a fruta, mas não lembro se algum dia provei. Até me deu vontade e fui espiar na internet como se faz. Não existe informação que não esteja armazenada por lá, nessa espécie de oráculo moderno. Coisa muito fácil de fazer, precisando apenas das peras – evidente, né? – uma garrafa de vinho tinto, açúcar, cravo e canela. Gosto muito desta fruta, de vinho e de doces em geral: vou ter que provar. Agora, o que até pouco tempo atrás eu jamais poderia sequer imaginar é que estaria, na minha casa, tratando de embebedar outras tantas. Mas confesso que tenho feito isso.

A gente chega do supermercado ou da feira e lá estou eu, passando um pano com álcool nas bananas, no mamão, no abacate. Pouco, mas imagino que o suficiente para eliminar o tal coronavírus, se é que ele se encontra por ali. Paranoia, talvez! Mas tenho certeza de que não estou sozinho. Essa está se tornando uma característica destes tempos que nem sei mais se são modernos, pós-modernos ou pré-apocalípticos. Afinal de contas, vivemos um momento no qual virou rotina acompanharmos todos os dias, nos noticiários das TVs, o número de mortos e de infectados. Ambos só crescem, quase sem que isso choque as pessoas. Exceto se algum familiar está agora engrossando essa estatística, porque então ela ganha um rosto e remete a várias lembranças. Agora, se isso é normal, por que não seria dar um banho nas compras?

As verduras são tratadas de modo diferente: ganham um demorado mergulho em água potável batizada pela quantidade recomendada de água sanitária. Depois ficou eu secando as folhas, com aquele instrumento plástico que gira e reduz a umidade usando a força centrífuga. Viram só? Estudar física no Ensino Médio um dia teria sua utilidade, mesmo para quem escolheu seguir as Ciências Humanas. A questão é que esse esforço todo cansa um bocado. E se não cansa de verdade, ao menos serve de desculpa. Então você tem que comer uma porção extra do que trouxe para casa. Não necessariamente das frutas e das verduras: pode e deve ser um abuso qualquer, como um doce dos quais eu tanto gosto.

Já confessei aqui outro dia, em outra crônica, que sou apaixonado por chocolates. Mas, mesmo recomendando que pessoas que tenham outros vícios, que sejam danosos à saúde, devam procurar grupos de apoio, eu jamais iria para uma hipotética C.A – Chocólatras Anônimos. Entendam que sou assumido e não anônimo. E também não iria porque aceito variar essa minha necessidade de açúcar no sangue: quem sabe um pudim de leite condensado, um pastel de Santa Clara, um cheesecake, um quindim, uma prosaica fatia de queijo acompanhada por outra de goiabada, uma mil folhas – milhar no nome, quatro ou cinco na realidade – ou um pastel de Belém?

Esse último foi criado em 1834 no Mosteiro dos Jerónimos, próximo à Torre de Belém. Foi uma forma encontrada para a sobrevivência, depois que expulsaram o clero e encerraram os conventos, devido à Revolução Liberal de 1820. Os muitos visitantes da região se habituaram depressa a saborear essa iguaria, cuja receita se mantém igual até os dias de hoje. Para mim também é quase uma questão de sobrevivência, algo doce para fazer companhia ao cafezinho após o almoço. Quanto às frutas, já recuperadas do pequeno teor alcoólico a que foram submetidas, sigo consumindo com muita satisfação. Em geral ao amanhecer ou no final das tardes. A pandemia não pode nos privar de todos os prazeres.

26.05.2021

Depois de ter lembrado de dois doces portugueses – os fabulosos pastéis de Santa Clara e de Belém – dedico também o bônus musical a Portugal, deixando aqui um fado. Trata-se de Meu Amor de Longe, com a fadista, atriz e apresentadora de televisão Raquel Tavares.