A LIÇÃO NÃO APRENDIDA

O tempo está acabando e revela ser cada vez mais improvável que os partidos do campo da esquerda, no Rio Grande do Sul, consigam pela primeira vez na história concorrer com um nome único ao Piratini, em outubro. Isso define com antecedência que o poder será mantido pela direita, com a reeleição de Eduardo Leite (PSDB) ou, o que seria ainda pior, entregue para a extrema-direita bolsonarista, representada por Onyx Lorenzoni (PL) ou Luiz Carlos Heinze (PP). E a questão central que está impedindo isso é a postura intransigente dos candidatos do PSB, Beto Albuquerque, e do PT, Edegar Pretto. Ao que tudo indica, ambos são favoráveis à formação de uma frente, desde que sejam eles os indicados a concorrer a governador.

O PSOL oferece o nome de Pedro Ruas e surpreende ao se mostrar disposto a quaisquer combinações, menos se Beto for o candidato. Isso decorre do profundo descontentamento do partido pelo fato do PSB ter se alinhado ao governo de Leite, dando sustentação e votando a favor de alguns projetos contrários a propostas históricas das esquerdas. O PCdoB, por sua vez, tem como nome mais forte o de Manuela D’Ávila, que afirmou seu desejo de não se candidatar a nada esse ano. Em tese seria a aposta para o Senado, numa eventual composição entre os dois “bicudos”. O PV, que é a menor das siglas envolvidas nesse projeto, apenas assiste e deve se associar ao que os demais decidirem. Suas reivindicações serão mais modestas, expostas na composição de um possível futuro governo.

Até pouco tempo atrás qualquer possibilidade de diálogo entre PT e PSB parecia ter sido esgotada, no Estado, apesar de concorrerem juntos ao Planalto. Uma pequena fresta foi reaberta, quando da visita de Lula e seu candidato a vice, Geraldo Alckmin (PSB), ao Rio Grande do Sul. Naquela ocasião foi reforçado o pedido de nova tentativa ser feita, para que fosse unificado o palanque aqui no sul. Mesmo assim, Beto está preferindo manter um namoro com o PDT. O interesse pedetista no casamento seria abrir espaço para Ciro Gomes. E Pretto acredita que pode ser muito beneficiado, sendo automaticamente colados a ele os votos que forem destinados para Lula. O mais provável é que ambos se deem mal. Isso porque o PDT está rachado; e porque nada assegura a transferência por osmose.

Com esse panorama, pesquisa divulgada por Exame/Ideia aponta, em um dos cenários propostos, que Onyx segue na dianteira com cerca de 30% das intenções de voto. Mas revela também que o nome com maior potencial eleitoral para ameaçar essa liderança é o de Manuela D’Ávila, mesmo ela se declarando fora da disputa, com 24%. Pretto e Beto juntos não somam o que ela tem. E Eduardo Leite está tecnicamente empatado, em terceiro, atingindo perto de 22%. Desta forma, a lógica aponta para um segundo turno entre Onyx e Leite, se ela realmente mantiver seu desejo de afastamento.

A grande questão, que permanece em aberto, segue então sendo essa incapacidade histórica que partidos de esquerda têm em renunciar a desejos particulares, muitas vezes personalistas, em troca de algo maior. Por nunca aprenderem essa lição, podem outra vez ficar fora do segundo turno, no Rio Grande do Sul, repetindo o desastre do pleito anterior. O ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, um líder ao mesmo tempo humilde e carismático, disse certa feita que “a esquerda se divide por detalhes nas suas ideias, enquanto a direita se une por interesses”. Parece que ele não falava apenas sobre o que acontecia em seu país.

24.06.2022

O bônus de hoje é o Hino da Internacional Socialista, com um trecho em inacreditável versão na forma de samba. Em espanhol e português, a gravação do clipe foi realizada pela presidência da Confederación Latinoamericana e del Caribe de Trabajadores Estatales (CLATE).

DICA DE LEITURA

A REPÚBLICA DAS MILÍCIAS: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso

(304 páginas – R$ 25,70)

O que fazia o policial Fabrício Queiroz antes de se tornar conhecido em todo o país como aliado de primeira hora da família Bolsonaro? E o líder miliciano Adriano da Nóbrega, matador profissional condecorado por Flávio Bolsonaro e morto pela polícia em 2019? E o ex-sargento Ronnie Lessa, apontado como autor dos disparos que mataram a vereadora Marielle Franco e morador do mesmo condomínio do presidente da República na Barra da Tijuca? Os três foram protagonistas de uma forma violenta de gestão de território que tomou corpo nos últimos vinte anos e ganha neste livro um retrato por inteiro: as milícias. Eles são apresentados ao lado de policiais, traficantes, bicheiros, matadores, justiceiros, torturadores, deputados, vereadores, ativistas, militares, líderes comunitários, jornalistas e sobretudo vítimas de uma cena criminal tão revoltante quanto complexa.

O livro se constrói a partir de depoimentos de protagonistas dessa batalha. São entrevistas que chocam pela franqueza e riqueza de detalhes, em que assassinatos se sucedem e as ligações entre policiais, o tráfico, o jogo do bicho e o poder público se mostram de forma inequívoca. Num cenário em que o Estado é ausente e as carências se multiplicam, a violência se propaga de forma endêmica, mas deixa no ar a questão: qual a alternativa? A resposta está longe de ser simples. Sobretudo num país de urbanização descontrolada e cultura política permeável ao autoritarismo.

Dos esquadrões da morte formados nos anos 1960 ao domínio do tráfico nos anos 1980 e 1990, dos porões da ditadura militar às máfias de caça-níquel, da ascensão do modelo de negócios miliciano ao assassinato de Marielle Franco, este livro joga luz sobre uma face sombria da experiência nacional que passou ao centro do palco com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Mistura rara de reportagem de altíssima voltagem com olhar analítico e historiográfico, A república das milícias expõe de forma corajosa e pioneira uma ferida profundamente enraizada na sociedade brasileira.

Basta clicar sobre a imagem da capa do livro, que está logo acima, para adquirir o seu exemplar. Caso isso seja feito usando esse link, o blog será comissionado.

EU ENTREVISTEI CRISTO

Que jornalista abriria mão de entrevistar um homem que se apresentava como sendo a reencarnação de Jesus Cristo? Meados da década de 1990 aparece na cidade onde eu morava um grande trailer com o próprio e algumas discípulas. Todas elas vestiam roupas em tons de azul claro e branco. E ele era um cidadão errante, que se deslocava o tempo todo pelo país, pregando ou relembrando ao povo, como preferia dizer, os seus ensinamentos. Sua aparência física lembrava um pouco aquela que o mundo ocidental adotou como sendo a do Jesus original. Ou seja, cabelos compridos e um rosto alongado com barba e olhos claros, algo bem ariano e totalmente improvável considerando onde nasceu o filho de Maria. Mas lá estava ele e se dispôs a conversar conosco. Comigo foi uma repórter do mesmo jornal. Ouvimos o que tinha a dizer e fizemos também algumas fotografias.

“Na outra vez que estive aqui, disse ele, também não fui reconhecido como sendo o Filho de Deus”. Foi a resposta quando se questionou a razão de não ter ainda conseguido mobilizar multidões em torno da sua presença. Segundo ele, mesmo tendo passado quase dois mil anos, a humanidade infelizmente ainda não estava de fato pronta para dar os próximos passos no rumo da evolução. Falou que seu sofrimento na cruz seguia sendo insuficiente e que muitos males ainda continuariam nos afligindo, até que se reconhecesse a verdade. O que, aliás, era ele próprio. Pelo menos se considerarmos as frases que ele repetiu nesse nosso encontro: “Eu já vos disse antes que sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim”.

Eloquente e carismático ele demonstrou ser. E falava com tanta certeza e desenvoltura que isso apontava para não duvidarmos de nada. Mesmo não apostando nossas fichas nele, vai saber? Tempos depois é que consegui levantar algumas outras informações sobre o cidadão. Seu nome de batismo era Álvaro Thais e nasceu em 22 de março de 1948 em Indaial, Santa Catarina. Nos anos 1970 mudou-se para Curitiba. Na capital paranaense se estabeleceu como astrólogo e adotou o nome de Iuri de Nostradamus. Ainda jovem, casou e teve dois filhos. Uma das suas ocupações era escrever para dois jornais daquele Estado, sobre o tema que se ocupava então. E que o aproximava do céu de uma outra forma.

Na TV Paraná ele foi apresentador do programa Zodíaco e Você. Nessa mesma época se tornou uma espécie de guru para a alta sociedade curitibana, ganhando notoriedade por fazer previsões, algumas delas ao vivo. Durante aquela década também travou alguns debates com outras figuras tidas como místicas e até com representantes da Igreja Católica e de protestantes. Em 1978 foi duramente espancado nas ruas, por um grupo de homens. O caso nunca foi devidamente esclarecido, mas os boatos apontavam para um suposto relacionamento com uma senhora casada. Isso o teria afastado da vida pública e iniciado um período de intensa introspecção e algum jejum. Foi quando teria recebido, direto do Pai Celestial e em Santiago, no Chile, a revelação de que era Cristo reencarnado.

Desde então percorreu vários países, sempre falando em nome do Pai. Em alguns foi impedido de entrar. Acabou retornando ao Brasil, onde entrou via Belém. Local muito apropriado, por sinal, devido ao nome. E por lá protagonizou uma situação inusitada: invadiu uma igreja, atacou o vigário e quebrou várias imagens de santos. Isso porque, segundo ele, nos templos atuais ocorre o que já havia acontecido dois mil anos atrás, quando tivera que expulsar mercadores: a comercialização da fé. Claro que acabou preso. Quando conseguiu sair, voltou para Curitiba, onde fundou a SOUST – Suprema Ordem Universal da Santíssima Trindade. Isso ainda existe hoje em dia, mas a sede foi para Brasília. O que não surpreende em nada, considerando o nível de loucura e associação entre falso cristianismo e poder que por lá impera atualmente.

Sua fama cresceu muito na década de 1980 e ele voltou a travar debates polêmicos, em especial com outra figura visionária, o Padre Quevedo. O que também fez crescer o ódio contra ele. O endereço de agora, na Capital Federal, é quase uma fortaleza, inclusive defendida por homens armados. O número de seguidores nunca parou de crescer, embora não se tenha uma noção aproximada do total. E doze deles – não por acaso o número é esse – são os mais próximos. Também a internet é recurso utilizado na propagação de suas ideias.

Não sei se ele tem caminhado sobre as águas do Lago Paranoá. Nem se mantém o hábito de multiplicar pão e vinho, o que poderia estar sendo feito agora para atender a população carente da periferia da cidade. Mas há gente que segue acreditando nele piamente. Assim como existe quem ainda acredita em outros tipos de Messias. Aliás, internamente, naquele que assim se apresenta, isso pode ser considerado um transtorno mental. A principal característica dessa doença, segundo especialistas, seria acreditar que Deus apontou a si como o responsável por salvar a humanidade, do que quer que seja. Que teriam sido abençoados ou “ungidos” pelo Criador para cumprirem na Terra uma missão mais do que especial. Em geral, isso não termina bem.

28.12.2021

Álvaro Thais, o INRI Cristo

O bônus de hoje a banda Acústico Reggae apresenta a música Tempos Próximos. Fundada em 2001, ela possui dois álbuns já lançados: Ar na Cidade e Nova Com Ciência. Fez participações no Festival Nacional de Reggae no Anhembi e no Planeta Atlântida.