AS TATUÍRAS DA PRAIA DO PINHAL

Na Pinhal da minha infância parecia existirem milhões de tatuíras. Acho mesmo que não há exagero nesse número. E eu me surpreendia pela velocidade com a qual elas voltavam a se esconder na areia, depois que as ondas do mar lambiam a praia e se recolhiam ao berço das águas outra vez. Faziam isso para se proteger dos nossos olhos, dos nossos pés e de predadores, certamente. Que vida monótona devia ser aquela: arrancadas do seu esconderijo pela força das águas, depois devolvidas para as proximidades dele, para outra vez serem removidas. Ficavam numa repetição sem fim de serem expostas e se ocultar.

Mas, se pensarmos bem, até as ondas do mar que as revolviam eram também entediantes, apesar daquela sua constante atividade. Se repetiam e repetiam, umas atrás das outras, constantemente. Nascendo não muito longe da rebentação, espumavam em brancura por alguns metros e se dissolviam. O que não tinham nada de monótonos eram os nossos dias, divididos entre banhos de mar, brincadeiras diversas, soltar pipas, caminhadas dos cômoros e ainda auxiliar nas pescarias que os adultos promoviam, tanto no mar quanto na lagoa. Algumas das tarefas domésticas também eram nossa responsabilidade, mas as mais simples. Coisas como ir comprar o pão todas as manhãs e secar a louça depois do almoço e do jantar.

As tatuíras – também conhecidas como tatuís – são crustáceos, sem a fama de camarões, lagostas, siris e caranguejos. Também não possuem o tamanho de nenhum deles e nem existe possibilidade de se tornarem uma iguaria culinária. Mesmo assim, são consumidas por corajosos que as preparam com azeite, sal, pimenta, cebola, alho e orégano, antes de fritar. Provavelmente apenas as que atingem tamanhos maiores, em torno de quatro centímetros, sirvam para isso. Aquelas das quais me lembro não passavam da metade disso, com muito boa vontade. Esse segundo nome que citei era como os povos originários as chamavam. A palavra é derivada do idioma tupi e significa “pequeno tatu”. A razão óbvia decorre da enorme semelhança física entre ambos. Outra informação relevante é que são excelentes iscas para pesca, sendo recomendado apenas que após apanhadas sejam mantidas em balde com água, uma vez que sua vida é curta fora do ambiente e exposta ao sol. Robalos e miraguaias são peixes que adoram os bichinhos, não se dando conta dos anzóis. Para azar deles e sorte dos pescadores.

Eu era levado para a praia pelo meu tio e padrinho Bento. O carinho dele e da tia Ivone eram imensos e só guardo boas recordações destes e de outros momentos, vividos em Porto Alegre. A vó Mariana, o Luís (não consigo saber se com S ou com Z), meus primos Rogério e Rosângela, completavam a família. Mas era ótimo quando também estavam outros do ramo Symanski, que dividiam a casa. Ainda mais quando o Guto e a Marilene apareciam por lá. E tinha a Gisela. O tempo não se repetir é uma das grandes injustiças da criação. Ele deveria ter um pouco do que nos mostram as ondas do mar, sendo diferentes e ao mesmo tempo iguais, além de sucessivas. E também poderia esconder coisas, como as tatuíras fazem consigo na areia. Mas apenas ocultar as que fossem ruins, as dores e as perdas. Seria tão bom estar lá outra vez, com todos eles ao vivo e não apenas na memória.

16.02.2023

Tatuíra se escondendo na areia da praia

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O TEMPO NEM SEMPRE FAZ BEM

Envelhecer não é fácil, podem acreditar. Eu que o diga. Se não todos os dias, asseguro que vez por outra essa percepção me atinge e afeta. Em geral são implacáveis coisas como os espelhos e as lembranças, essas quando estão recheadas de saudade. Você se dá conta do que não está mais conseguindo fazer, de que nem todo mundo que você ama continua do seu lado, de que seus anos futuros com certeza serão muito menores em número do que aqueles que já passaram. E isso tudo dói. Com a dor maior sendo produto da nossa absoluta impotência diante da passagem do tempo.

Agora, existem pessoas que conseguem envelhecer muito melhor do que outras. Há algumas até que, quando atingem idades mais avançadas, se tornam versões melhores de si mesmas. Entretanto, como tudo na vida, também temos aquelas que quando envelhecem você tem a impressão que são outras, no sentido de que desdizem tudo aquilo que sempre disseram, negam tudo aquilo em que sempre acreditaram. São esses dois tipos os lados opostos de uma moeda, completamente antagônicos. E temos a terceira via – algo que nas eleições não tivemos –, que são aquelas do meio termo, sendo o que sempre foram. Isso, dependendo do ponto de vista do qual se observa, pode ser ótimo ou péssimo. Acho que estou nesse último grupo, mesmo mantendo uma leve esperança de ainda ter como integrar o primeiro.

Há quem diga que envelhecer é uma arte. Nunca soube tocar nenhum instrumento; não pinto nem parede, muito menos quadros – se bem que nunca tentei –; só interpreto bem o papel de Solon, uma vez que faço isso há décadas; dançando sou um desastre absoluto; e tenho tentado escrever, até agora sem sucesso que garanta subsistência. Deste modo, música, pintura, teatro e dança estou fora; literatura, talvez ainda ocorra um milagre. Mas esse tal de envelhecimento, não há escola de arte que nos ensine. Tenho me apegado apenas à ideia de que a criatividade independe da idade cronológica; que, contrariando todas as evidências anteriores, o cérebro, uma vez mantido ativo, pode seguir caminho oposto ao restante do corpo, não decaindo como se vai o restante da nossa estrutura física.

José Saramago despontou como escritor apenas aos 60 anos, quando lançou Memorial do Convento, em 1982. Passados 16 anos, em 1998, ganhou o Nobel de Literatura. Charles Darwin foi um tanto mais precoce, uma vez que seu A Origem das Espécies veio em 1859, aos 50 anos. Clarice Lispector escrevia desde quando tinha 23, mas sua obra mais famosa chegou aos 56: A Hora da Estrela, publicada em 1977. Victor Hugo foi outro, que publicava desde os 29 anos, mas Os Miseráveis, a sua obra prima, foi levada ao público quando ele tinha 60. J.R.R. Tolkien modernizou a literatura de fantasia ao lançar a trilogia O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, quando tinha 62 anos.

Leonardo Da Vinci concluiu a Mona Lisa com 54 anos e Michelangelo terminou O Juízo Final aos 66. A obra Ponte Sobre Uma Lagoa de Lírios de Água foi feita por Monet, com 59 anos de idade, enquanto Pablo Picasso nos premiou com Guernica, aos 56. Cito aqui apenas quatro grandes mestres e suas obras-primas. Existem centenas de outros exemplos. Aos 80 anos Jessica Tandy ganhou o Oscar de Melhor Atriz por seu papel em Driving Miss Daisy, enquanto entre os homens Christopher Plummer tinha 82 quando foi agraciado com a premiação do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, por Beginners. No Brasil, Fernanda Montenegro parece representar com ainda maior perfeição, conforme o tempo passa.

Cássia Kiss, em 1989, foi a primeira mulher a aparecer com seios à mostra na história da televisão brasileira, ao estrelar uma campanha surpreendente e de absoluto sucesso, sobre a prevenção ao câncer de mama. Ela ensinava a fazer o autoexame, mostrando ao vivo como deveria ser feito. Em 1997 admitiu, juntamente com outras famosas e algumas anônimas, em capa da revista Veja, que já havia feito aborto. Ao longo da vida foi hippie, fumou maconha e construiu uma carreira sólida como uma das melhores atrizes brasileiras. Seria normal o abandono desses dois primeiros hábitos, mas ela foi muito além disso. Durante anos se disse espírita – o que não a absolveria de nada – e agora, mais recentemente, aderiu a um catolicismo radical, virando ainda uma defensora ferrenha da extrema-direita. A ponto de fazer discursos homofóbicos e ir se ajoelhar no meio da rua, para rezar ao lado de manifestantes anti-democráticos, pedindo a volta da ditadura, entre outras barbaridades.

Há pessoas que de fato envelhecem como um bom vinho, melhorando. Outras têm como destino virar vinagre. Aliás, esse produto, quando feito a partir do vinho, resulta de se acrescentar um agente microbiano que faz com que sofra um processo de oxidação. Agora me caiu a ficha: talvez a introdução de determinadas ideias faça com que cérebros despreparados também se oxidem. Arte e convívio com pessoas inteligentes podem ser os antídotos necessários.

06.11.2022

O bônus musical duplo de hoje tem primeiro Envelhecer, com Arnaldo Antunes; depois trazendo Paciência, de Lenine.

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