Dois ovos e a tramela do portão que separava os pátios, foram demais para o tamanho das minhas mãos. Por isso não tive capacidade de cumprir a tarefa que eu resolvera dar para mim mesmo, em segredo. Ainda muito pequeno, quis mostrar que conseguiria buscar o produto que as galinhas nos forneciam, religiosamente. Não deu certo. Ambos quebraram no chão e não na frigideira, onde se pretendia que fossem fritos. Fiquei mal com isso, mal comigo mesmo, muito mais do que o aborrecimento que imaginei iria causar nos adultos. Minha mãe e meu pai me consolaram devido “à perda”. Mas isso não adiantou nada e eu continuei arrasado. Talvez tenha sido minha primeira derrota, minha descoberta de que não se pode tudo. E que, às vezes, as consequências dos nossos atos resultam em algo que não tem conserto, não se consegue recuperar, sendo irremediável.

Eram três terrenos em série, que iam de uma quadra até a outra. No primeiro estava a casa; no segundo o galpão com depósito e o galinheiro; no terceiro um pomar considerável, em variedade de frutíferas. Bons tempos de vacas gordas, com meu pai sendo tabelião na minha cidade natal. Pena terem durado menos do que eu gostaria, mas deixaram algumas recordações das quais tenho me lembrado nos últimos tempos mais do que normalmente. Talvez a vida seja circular e a terceira idade nos aproxime outra vez da infância. Ou sejam estertores da memória, antes de nos pregar uma peça definitiva, se retirando sem outros avisos.

Não lembro por exemplo de quantas e quais eram as árvores que nos presenteavam com seus frutos. Sei que eram muitas e variadas. Eu também gostava dos pinhões, mas esses não eram produção própria. Vinham dos inúmeros pinheirais que ainda existiam nas redondezas e minha preferência recaía, como até hoje, pelos que eram cozidos. Os feitos na chapa do fogão à lenha não tinham, a meu ver, o mesmo sabor. No depósito das ferramentas não se podia entrar sem um adulto, porque algumas eram perigosamente cortantes. Nele, também a ração das galinhas, que eu podia pegar e servir. Se formava um alvoroço, com os bichos sempre me cercando com muito barulho.

Naquele mesmo galinheiro tive um casal de garnizés, aqueles galináceos menores do que as galinhas domésticas comuns, que são conhecidos por vários outros nomes: galirés, jamaicanas, galinhas-do-reino e mais alguns. No mesmo endereço morou um galo que queria se apropriar do território, assim como grileiros no norte do Brasil. Ele atacou o meu pai, certa feita, bicando e ferindo seriamente o peito do pé dele. Em um julgamento sumário, foi aplicada de forma inapelável a pena de morte, com seu corpo terminando na panela. O seu Saldanha resmungou algum tempo, mancou uns dias e depois esqueceu disso, porque tinha mais o que fazer.

Eu também tinha, mas nada sério. Minhas outras aventuras eram por ali mesmo, observando bichos e plantas, aprendendo a ouvir histórias e depois a ler as que encontrasse em livros. Não existia televisão, mas eu gostava de ouvir o rádio. O problema é que ele captava com maior facilidade emissoras que transmitiam em espanhol do que as nossas. Isso quando o idioma não era ainda mais estranho e quase hostil. O que não me impedia de imaginar tudo aquilo que não via. E o que eu não vi mesmo, percebo agora, é quanto o tempo passa. Ele vem como um arrastão e leva tudo o que pode com ele, mesmo também deixando cair coisas pelo caminho. Essas que a nossa memória trata de apanhar. Elas são mais leves do que ovos das galinhas e, quando nos escapam entre os dedos, ainda assim podem ser aproveitadas de algum modo depois. Como estou tentando fazer agora.

21.09.2021

Garnizés são bem pequenos

No bônus de hoje os Tribalistas (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte) cantam Velha Infância. Compõem a banda: Dadi (guitarra, baixo e teclados), Pedro Baby (guitarra, violão e vocal), Pretinho da Serrinha (percussão, cavaquinho e vocal) e Marcelo Costa (bateria). O clip foi gravado em apresentação ao vivo no Allianz Parque, em São Paulo.

8 Comentários

    1. Realmente, o final do galo foi mais trágico do que os ovos quebrados. Obrigado pela leitura e pelo comentário!

      Indeed, the end of the rooster was more tragic than the broken eggs. Thanks for reading and commenting!

      Curtido por 1 pessoa

  1. Entrada maravilhosa e sensível !! A memória curta é o oposto da memória longa; para o qual trazemos das prateleiras de nossa biblioteca mental, memórias maravilhosas e não tanto da nossa infância e adolescência, que nos transportam para ruídos, cheiros, sabores, cores e tantas outras coisas, que nos fazem querer revivê-los , para sair dessa escuridão hoje para ser, mesmo que por um tempinho, feliz. Uma saudação cordial.

    Curtido por 1 pessoa

Deixar mensagem para elcieloyelinfierno Cancelar resposta