O filme Paraíso, do russo Andrei Konchalovsky, esteve na lista de concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2017. Ganhara o Leão de Prata de Melhor Diretor, no Festival de Cinema de Veneza, Itália, no ano anterior. Rodado em preto e branco, não tinha mesmo como usar cor alguma. Porque é sombrio como a época e local onde se passa a história narrada: a França invadida e um campo de concentração para onde são levados judeus e outros acusados de integrar resistência ao nazismo. A bela atriz e apresentadora de TV russa Julia Vysotskaya faz o papel da protagonista Olga. Entre os demais, destaques para o policial Zhyul (Philippe Duquesne) e o militar Khelmut (Christian Clauss).

O título do filme é quase um deboche, porque identifica aquilo que a pretensão alemã se achava capaz de criar e não o ambiente que a guerra terminou produzindo. “Você sonha com o paraíso na Terra. Mas não existe paraíso sem inferno”, afirma o oficial alemão corrupto ao membro da SS que investiga abusos no campo de concentração. O investigador vai ao local para impedir saques aos pertences dos presos e desvios dos mantimentos enviados por seu próprio exército, mas não considera absurdas as atrocidades praticadas no dia-a-dia e nem o uso da câmara de gás e a cremação indistinta. O campo estava de tal forma lotado que os ocupantes dos novos trens que chegavam, em especial vindos da Hungria, já eram eliminados direto após o desembarque.

A pouca alegria que é vista vem de um filme que Khelmut assiste, mostrando férias com amigos aristocratas em tempo anterior à guerra. Nele, por força do destino, estão algoz e vítima de agora, ambos bem nascidos, em contato breve. E mesmo essa felicidade soa pouco verdadeira, mais fruto da embriaguez do que de um prazer legítimo. “O mal cresce sozinho, sem precisar de ajuda”, filosofa em certo momento uma Olga agora presidiária, que vai aos poucos perdendo-se de si mesma. Ela, que ao ser detida pela polícia francesa, acusada de estar acobertando e protegendo judeus, se oferece ao policial colaboracionista para tentar escapar de destino pior. Corpo, confiança e temperamento vão se dissolvendo com a desesperança. E se alternam momentos cada vez mais raros nos quais vê alguma saída, com outros em que resta a certeza de um fim sem consolo algum.

Desta vez se tem uma narrativa não baseada no “heroísmo”, na “libertação” que os filmes norte-americanos adoram mostrar, quando usam a Segunda Guerra Mundial como tema. Não existem os mocinhos e também ninguém é inocente. A infâmia é distribuída entre todos. “Eu não preciso pedir desculpas por nada. Perdemos a guerra mas fomos pioneiros em algo maior. O mundo ainda não está pronto para a perfeição”, afirma o convicto Khelmut, que não se afasta um milimetro da certeza da superioridade ariana, nem diante da derrocada. O mesmo que sorve goles do seu schnapps, aparentando tranquilidade, enquanto bombas lançadas pelos inimigos explodem cada vez mais perto.

Terrível é a cena em que uma detenta cai morta e suas colegas se jogam sobre o corpo, lutando pela posse de botas gastas e vestes sujas. A degradação humana, onde impera selvageria entre iguais, no desespero por um cigarro, ou por um prato de sopa rala e um naco de pão duro, se repete ao longo de dias sempre iguais. Ratos presos que devoram uns aos outros, no melhor estilo das pesquisas do psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner, professor em Harvard. Ele acreditava que a ação humana é consequência de ações anteriores, sendo o livre arbítrio uma imensa ilusão. O comportamento, segundo ele, sempre é moldado pelo meio. A banalização da violência e da morte também é mostrada em outra cena, na qual dois meninos caminham por uma estrada, brincando e rindo, alheios aos corpos que estão estirados à margem do percurso. Me fazendo companhia em mais um dia de confinamento, o filme mostrou que minha casa definitivamente não é uma prisão. E que as máscaras de pano que eventualmente se precisa usar estão longe das moldadas em faces fanatizadas por uma ideologia ultraconservadora e totalitária.

15.04.2020

4 Comentários

  1. Aqui, sempre acompanhando suas postagens! Excelentes! Estou terminando de ver O POÇO! Vou aproveitar este post como sugestão para o meu próximo filme. Depois de ver eu comento! Parabéns pelos textos, sempre muito bem elaborados! Grande abraço!

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  2. Eu não tenho competência emocional para assistir filmes deste tipo. Parece contraditório dizer isso e adorar filmes de terror. Contudo, reconhecer o potencial humano de promover e justificar o horror é ainda mais assombroso.
    Obrigada pelo relato, meu amigo.
    Ansiosa por novos.

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