Encontrei meio perdido na estante meu exemplar de Antônio Chimango, que o autor chamou de “poemeto campestre” e foi escrito em 1915. É da Martins Livreiro, de Porto Alegre, impresso em 1978. Não chega a 80 páginas, somando também o prefácio de Carlos Reverbel, o posfácio de Rodrigues Till, fac-símiles da capa da edição original e do frontispício de outra publicada pela Editora Globo, em 1961, além de ilustrações de Mário Mattos. Trata-se de uma sátira política escrita em versos heptassílabos – ou redondilha maior – por Ramiro Barcellos que, com o pseudônimo de Amaro Juvenal, tenta destruir a imagem do seu até então correligionário, Borges de Medeiros. Uma vingança intelectual em razão deste ter impedido sua candidatura ao Senado.

Foi fácil ler outra vez esse trabalho brilhante. O estilo adotado pelo autor é semelhante ao encontrado em Martin Fierro, poema do argentino José Hernández, que também se passa numa estância. Só que a acidez desse gaúcho do lado de cá da fronteira é arrasadora. E o primeiro é nostálgico, enquanto o segundo é satírico. Antônio Chimango está dividido em cinco partes, que recebem o nome de “rondas”. Isso porque a história é contada aos poucos, durante cinco momentos, em cinco finais de tarde, inícios de noite, quando capataz e peões se reúnem depois da lida diária, em vigílias. Outra característica é que são duas as vozes que narram os fatos: a do piá “taludo” que desafia os presentes para que contem “causos”, enquanto circula a botija de cachaça; e a do tio Lautério – /Um mulato velho mui sério /Cria de dona Maruca –, que aceita o desafio e conta a história do personagem central. Visualmente, quando se expressa o primeiro o texto está em itálico, enquanto o outro tem grafia normal.

Borges de Medeiros, natural de Caçapava do Sul, o presidente do Estado – era assim que se chamava na época –, era advogado formado pela Universidade Federal de Pernambuco; e Ramiro Barcellos, nascido em Cachoeira do Sul, era jornalista e médico, formado no Rio de Janeiro. Em comum, ambos políticos e pertencentes à elite rio-grandense, que vinha do sul e da campanha. Duas correntes políticas disputavam o poder: os liberais, conservadores; e os republicanos, positivistas. Essa dualidade sempre foi marca na história do nosso Estado, como acontece até hoje, jamais existindo – ou resistindo – uma terceira força em nada. Mas não eram e não são raras as adesões e as desistências de apoiadores, com trocas de lado, na formação e manutenção de legendas. Essa oscilação só parece ser impossível por aqui quando se trata de futebol: gremistas e colorados são os únicos inconciliáveis no Rio Grande do Sul.

Pela mágoa de ser vetado por seu primo – sim, os dois eram parentes – Ramiro rompeu com ele e usou seu talento para denunciar, o que não parecia ser importante para ele antes, manobras e conchavos que faziam com que os castilhistas se mantivessem no poder – Borges era herdeiro político de Júlio de Castilhos –, com sucessivas farsas eleitorais. Com seu poemeto, cria uma metáfora onde a realidade do Estado fica retratada em âmbito menor, na estância, com a mesma estrutura viciada. E não precisa entender ou gostar de política para compreender o que é mostrado ao longo de nada menos do que 213 sextilhas. As descrições do ambiente e da personalidade e da conduta de Antônio são de fato primorosas. O termo chimango, por exemplo, vem do nome de uma ave que é sorrateira e não constrói ninhos, um carcará que aproveita aqueles que encontra construídos, que mata suas presas com o bico agudo em ataques inesperados e certeiros. A imagem da inconfiabilidade, do risco da traição. Não por acaso, depois da publicação da obra os borgistas passaram a ser chamados por esse apelido, por seus opositores.

Não se encontram mais exemplares em livrarias tradicionais, mas isso é possível em sebos e em sites especializados. E existe a possibilidade de baixar cópias em PDF, de mais de uma fonte, sem custo. A Universidade de São Paulo é uma delas, tendo reproduzido uma edição bem antiga. Enquanto isso, fico eu aqui imaginando – pura maldade minha – uma certa figura tentando pronunciar a palavra heptassílabos e as versões diferentes que viriam na certa dessa iniciativa infrutífera. Saudade dos tempos nos quais a imensa maioria das nossas lideranças políticas tinham uma certa cultura. Ou, nos casos raros em que até mesmo instrução lhes faltava, possuíam uma imensa dignidade.

13.04.2020

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s