No Brasil, as novelas televisivas sempre tiveram grande influência na criação do imaginário popular. O que elas mostram nas telas passa a ser aceito mais facilmente como sendo uma reprodução bastante fiel da realidade, o que em muitos assuntos não apenas está distante da realidade como inclusive ajuda a distorcê-la. As que ao longo do tempo trataram dos negros escravizados, por exemplo, apresentavam senzalas relativamente limpas, refeições razoáveis e roupas simples, quase como um uniforme relativamente digno. Castigos, apenas vez por outra e nunca extremos. Tudo bem que não se poderia sair a espancar os atores, apesar de tronco e açoite serem às vezes simulados. Porém, existem técnicas e efeitos especiais disponíveis, que poderiam evidenciar esse sofrimento de uma forma mais próxima do que era de fato imposto, denunciando a existência de diversos outros tipos de tortura. No mínimo deveriam mostrar os “aparelhos” com os quais os submetiam.

Não lembro de alguma vez ter visto na TV algum escravizado usando as máscaras de metal que lhes colocavam, quando iam trabalhar nas colheitas. E isso era rotineiramente aplicado, por três razões. Queriam evitar que eles comessem as frutas que colhiam – bananas, abacaxis, laranjas e outras tantas, além das canas de açúcar. Também para impedir que eles cantassem as canções africanas que os identificavam, tanto as de cunho religioso como também as de guerra, que poderiam motivar rebeliões e fugas. E ainda para evitar que aquele tempo fosse usado para que os mais velhos ensinassem línguas e dialetos aos seus filhos, que os acompanhavam no trabalho. O objetivo era afastar quaisquer vínculos com suas origens e forçar que adotassem tanto o idioma quanto as crenças dos seus senhores. Não raras vezes, antes do artefato metálico ser fixado, os feitores lhes introduziam algo na boca. Deste modo, depois que o cadeado era fechado nem mesmo falar eles conseguiam.

Essa era apenas uma das formas de tortura cotidiana, destacando-se de outras pelo fato de que não era uma punição por “mau comportamento”, sendo “preventiva”. Mas existia também o anjinho, um nome delicado e quase sublime para um aparelho portátil que conseguia impor dano e dor inenarráveis. Era uma espécie de torno, algumas vezes com pregos no meio. O escravo tinha suas mãos colocadas lado a lado, com seus dois dedões sendo apertados juntos pelo pequeno artefato. Sangramentos eram quase inevitáveis e deformações não eram raras. Também atingia suas mãos a punição feita com o bolo, que era uma espécie de palmatória feita de madeira, com as quais apanhavam.

Ainda podem ser citados o colar de pescoço, uma estrutura metálica com pontas salientes ao redor, que era fixada de tal modo que o escravo não conseguia descansar. Primeiro pelo peso do artefato, depois porque com ele – e eram muitos dias seguidos – sequer tinha como dormir direito à noite. E também havia o vira mundo, que prendia mãos e pernas conjuntamente. Posto na altura das canelas, ele aproximava a mão direita do pé esquerdo e a mão esquerda do pé direito, todos os membros imobilizados pelas “pulseiras” metálicas. Ou seja, enquanto durasse o castigo a pessoa ficava curvada e sem condições de se movimentar. Já o açoite, esse tinha inclusive previsão legal. O senhor de engenho poderia fazer uso da sua prerrogativa inclusive em praça pública. Para tanto, pedia autorização para o intendente da polícia, baseado no Código Penal, que determinava o número de chibatadas em função do suposto delito. Claro que sem direito à defesa. E vou parar por aqui, sem pretensão alguma de listar todos os suplícios que lhes eram impostos, pois vão muito além dos citados.

Pois foi esse povo trabalhador que, uma vez “liberto”, pode escolher entre continuar trabalhando para os mesmos senhores, apenas em troca de comida, ou seguir mundo afora somente com a roupa do corpo e sem perspectiva nenhuma. Os proprietários de escravos, por seu turno, foram todos indenizados pelo governo, recebendo dinheiro público. Era como se tivessem vendido sua mão de obra cativa para o poder público que, esse sim, lhes alforriava. Claro que as leis que determinaram essa indenização foram acordadas pelos deputados, praticamente todos eles grandes fazendeiros que usavam a força produtiva dos escravizados negros. Ou seja, votaram a favor dos seus interesses, como de resto se vê acontecer até hoje nos legislativos brasileiros. Nessas casas, atualmente, temos muitos que sonham com o fim das cotas raciais, por exemplo, negando que elas sejam o instrumento legal minimamente reparador que de fato são. Aposto que nenhum desses “representantes do povo” iria suportar um único dia aquilo que nossos antepassados brancos impuseram aos negros no passado.

17.01.2022

Máscaras de ferro semelhantes a essas eram comuns em escravos que trabalhavam na colheita
O vira mundo prendia pés e mãos dos punidos, que ficavam imobilizados em posição curvada, dias a fio

O bônus musical de hoje é Vida de Negro é Difícil, na voz de Dorival Caymmi. A canção foi composta por ele, em parceria com o escritor Jorge Amado. O nome original dado a ela foi Retirantes, mas depois o público acabou forçando a mudança, ao identificá-la com um dos versos mais repetidos na letra. Também teve o apelido de Lerê-Lerê, ao ser utilizada na trilha sonora da novela Escrava Isaura – que conseguiu a proeza de colocar uma atriz branca para fazer o papel da protagonista.

Fica como sugestão a leitura do livro A Escravidão no Brasil, de Jaime Pinsky. O texto é objetivo e ágil, engajado e muito bem documentado. Trata de questões centrais, abordando temas como o tráfico, a vida cotidiana dos escravos no trabalho e na senzala, a vida sexual e a resistência oferecida pelos negros contra a opressão. O autor revela o caráter cruel da escravidão e sua influência perversa na formação de nossa sociedade. Clicando sobre a imagem acima você será direcionado, podendo adquirir a obra se isso for de seu interesse. Se fizer a compra usando esse link, o blog será comissionado.

8 Comentários

  1. Me gustaron mucho Isaura y Sinha Moca. (Lo siento, pero no tengo aquella letra francesa que deberia usar en lugar de C alla). Lucelia Santos era una actriz muy buena. En Rumania de los anos 1990-1995 hay muchas muchachas llamadas Isaura, por la telenovela que gustaron los parientes. 🙂

    Los campesinos rumanos de los siglos 17-19 que trabajaban en la hacienda de algunos ricos tenian una mascara tambien, para no comer las uvas, pero no en todas partes, solamente en algunas haciendas.

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    1. Gosto de receber teus comentários. O que falta em teu teclado na Romênia é o cedilha, mas isso não atrapalha o entendimento. Quanto à escravidão, essa é uma das maiores vergonhas na história do Brasil.

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  2. Terrível história que muitos querem ignorar. De outras maneiras o país continua a manter muitos escravizados. Temos que saldar essa conta.

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