Muitos anos atrás, eu ainda sendo um piá, como dizem aqui pelas bandas sulistas deste Brasilzão – aumentativo masculino singular de Brasil –, recém tendo entrado na faculdade, tive que assumir algumas outras responsabilidades que antes não me competiam. Não pelo novo “status” como estudante, mas porque meu pai falecera e restamos apenas dois morando naquele endereço na rua Anita Garibaldi: minha mãe e eu. Então, tinha que fazer com que coubesse isso no meu tempo, entre as muitas aulas, umas poucas amizades e o direito de estar descobrindo um mundo novo em vários aspectos.

Como às vezes não cabia tudo isso nas 24 horas de alguns dias, onde também eu incluía música, cinema, namoro, jogos do Grêmio, leitura, futebol de salão e preguiça, bastava chegar em casa e minha mãe vinha me fazer algumas necessárias cobranças. “Tu tens que fazer isso, te tens que fazer aquilo”, era o que eu ouvia em algumas ocasiões, antes mesmo de largar meu velho companheiro, o bornal onde levava o que era meu. Foi assim que a minha imaginação, muito fértil naquela época, criou a figura de Tutensky. Esse ser disforme habitava e se escondia atrás da porta de entrada e estava sempre à espreita. Tinha o hábito de atacar incautos – nem precisava ser no plural, pois só havia eu. Ele se alimentava do restante da minha energia, depois de ter devorado a paciência da dona Vicentina. E, dependendo do tom de voz que ela adotava, era melhor atender logo o monstro, que nessas horas parecia ser seu bicho de estimação.

Tutensky era terrível, mas assim com “t” minúsculo. Diferente do primeiro a ter esse apelido: Ivan, o Terrível (no sentido de impiedoso). Esse foi o Grão-Príncipe de Moscou até quando da fundação do Czarado da Rússia, em 1547, quando continuou a reinar até sua morte, como Czar. Ele tinha uma personalidade que pode ser no mínimo qualificada como complexa. Talvez hoje fosse diagnosticado como bipolar. Muitas fontes históricas o descrevem como inteligente, hábil diplomata e patrono das artes, sendo um líder muito popular. No entanto, tinha acessos de raiva e inclusive alguns surtos, quando se mostrava totalmente desequilibrado e sem compaixão. Numa dessas ocasiões, matou seu filho mais velho, o herdeiro do trono. Por isso, quando morreu acabou sucedido pelo mais novo, Teodoro I.

Para amenizar o ataque do aliado da minha mãe, algumas vezes eu ameaçava pegar ela no colo. Como ela discordava dessa minha reação, talvez temendo que aquele jovem que nunca primou por um bom porte físico, a derrubasse, se recusava. O que terminava se tornando uma cena um tanto pastelônica, comigo correndo atrás dela ao redor da mesa da sala. Como o riso tinha poder de amenizar a fúria da fera – e agora nem sei mais se estou me referindo a ele ou ela –, o problema ficava temporariamente adiado. Mas claro que não esquecido.

Faz bem lembrar agora daquele tempo no qual problemas e obrigações eram tão pueris. Pagar contas, fazer mercado, arrumar a casa, resolver alguma questão com o condomínio. Não que isso tenha deixado de acontecer depois, mas os níveis de preocupação e responsabilidade eram outros. A juventude faz um bem enorme para a gente. Seria tão melhor se ela durasse mais. Mesmo que o Tutensky continuasse por perto, na certa valeria muito a pena.

07.10.2021

O monstro vivia atrás da porta

No bônus musical de hoje, Linda Juventude, de Flávio Venturini e Márcio Borges. A interpretação é de Tuia e Ana Vilela.

3 Comentários

  1. Adorei seu relato de um tempo que já passou; Mas com certeza, salvando as distâncias, cada um de nós, se pudesse, pagaríamos até por um único dia para revivê-la. Uma saudação cordial.

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  2. “A juventude faz um bem enorme para a gente. Seria tão melhor se ela durasse mais. Mesmo que o Tutensky continuasse por perto, na certa valeria muito a pena”. Concordo em grau, número e gênero. Um texto que aperta o coração da gente, de saudade! Muito bom, amigo! Sobre a música de bônus, nota 1000. Grande abraço!

    Curtido por 1 pessoa

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