Uma das boas recordações que tenho da minha infância foi a pandorga que meu tio e padrinho Bento Bidigaray da Cunha fez para mim, num verão passado na praia do Pinhal. Menino interiorano, nas férias escolares vinha sempre para Porto Alegre e arredores, onde residia praticamente toda a numerosa família da minha mãe, dividindo este tempo em três períodos distintos. Com os avós maternos, no IAPI; com meus tios Valdomiro e Dorcas, em Canoas; e com meus padrinhos, Bento e Ivone, estes no bairro São João e também nas idas à praia. Para que meus leitores que não sejam do Rio Grande do Sul, vou explicar: pandorga é o nome que se dá aqui ao que a maioria dos demais brasileiros chama de pipa. Mas também tem quem chame da cafifa, raia, curica, gaivota, piposa, rabiola ou quadrado. Sei que no Amazonas e no Acre o nome dado é pepeta ou arraia. E no português nativo, de Portugal mesmo, optam por denominar papagaio.

Seja com que nome for, o brinquedo voa. E isso é maravilhoso. Ele decola como a imaginação infantil e põe nossos sonhos nas alturas. Quando se é pequeno não importa entender como isso acontece: vale só saber que ela fica lá, tentando fugir na direção do céu, enquanto a gente na outra ponta da linha busca mantê-la sob controle. Algo que, depois que a pessoa cresce, não consegue fazer o tempo todo, com a sua própria vida. Me lembro de detalhes da confecção da pandorga: as varetas que ele encontrou, o entalhe cuidadoso dos vincos por onde passariam as amarras de barbante, o papel cortado e colado, o “rabo” de pano preso para fazer o contrapeso essencial para seu “voo”. Fomos comprar a linha de nylon e no dia seguinte ela estava pronta. Era colorida e dançava tendo o céu azul como pano de fundo, num balé encantador.

As pandorgas foram inventadas pelos chineses. As primeiras das quais se têm notícias conheceram os céus da China 3.000 anos antes do nascimento de Cristo. E foram utilizadas não apenas como diversão: mais tarde serviram também para sinalizações militares. Aqui no Ocidente, Benjamin Franklin descobriu outra utilidade bem prática: auxiliar na comprovação da eficiência de um invento seu, o para-raios. Ele prendeu numa delas um pedaço de metal e a fez voar durante uma tempestade, para que fosse atingida pela descarga elétrica. Uma tradição espanhola fazia com que as soltassem durante a Sexta-feira Santa. E no Brasil, apareceram cerca de um século depois da chegada de Cabral, também através dos portugueses.

Existem publicações que ensinam a fazer pandorgas. Uma delas é o livro Engenheiro de Pipas – O invasor dos ares, de Ken Yamazato. Nele o autor não apenas ensina formas diferentes de serem feitas, demonstrando técnicas. Também incentiva as pessoas a terem por elas a mesma paixão que ele tem, mostrando ilustrações de muitas que fez e que possui. Segundo suas palavras, há inclusive uma interação familiar e social interessante, na confecção e no uso deste brinquedo – concordo com isso, lembrando da minha lá no Pinhal. O livro ainda traz um roteiro passo-a-passo que auxilia quem não tem experiência a estrear nessa arte milenar.

As pandorgas sobem porque sua estrutura tem a curvatura de uma asa de avião. Existe uma parte superior que é convexa e uma inferior que pode ser reta ou côncava. A pressão do ar na parte de baixo empurra ela para cima, quando se puxa a linha na largada. São mantidas no céu pela resistência da passagem do ar, que é mais rápida ou lenta conforme o ângulo, pressão e “puxadas” feitas pelo operador. Seu corpo pode ser de papel de seda, de tecido ou plástico. Mas a sua alma é de aventura, de imaginação, vontade e coragem para voar. Coisas que a infância nos oferece de sobra.

20.06.2020

8 Comentários

  1. Saudades Solon ! Fiz uma viagem à doce lembrança de uma infância feliz , eu segurar a pandorga enquanto o Mano distanciava a linha, corria , eu a soltava e ficava vendo aquela beleza no céu voando.

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  2. Nunca fui muito bom para soltar pandorgas, mas me veio neste momento a sensação boa que sentia quando lutava para domar a minha pandorga no ar. Estou me sentindo criança agora! Viajei no tempo!!!!!!!!!!! Valeu pelo belíssimo texto, meu amigo! Deixo aqui um link pra quem quiser matar saudades desses bons tempos! https://youtu.be/Volw1ZnUHAw – Grande abraço.

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