Numa história curta, brilhante como sempre foram os textos do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), publicada em O Livro dos Abraços, ele nos apresenta um relato que escancara o que é a solidão. O diretor de um hospital em Manágua, capital da Nicarágua, está terminando bem tarde o seu turno de trabalho, na véspera de Natal. Decide ir embora quando os foguetes estão espocando e os fogos de artifício iluminando o céu. Sua família o espera em casa. Na última verificação que faz, para ter certeza de que tudo está bem, sente que passos o seguem pelos corredores. “Passos de algodão”, conforme o relato. Ao virar-se, o médico reconhece um pequeno paciente, “sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas ou talvez pedissem licença”. O garoto estava internado sem acompanhante. Quando o médico se aproxima, recebe um roçar leve com a mão e o comovente pedido: “Diga para… Diga para alguém que eu estou aqui.”

Eu conheci o que é a solidão hospitalar. Mesmo diante do vai e vem de gente amiga e de gente estranha, ela está presente. A UTI sem janelas, o tempo que perde a referência, o relógio que se torna desnecessário, as refeições que não lembramos ter feito… Eu também vi uma criança, um bebê que enfrentou isso sozinho, perto de onde o meu filho estava acompanhado. Ouvia o ruído da sua respiração difícil. Me sentia nessas horas duas vezes inútil, mil vezes impotente. Todos nós estávamos sós.

Não existe nada pior do que estar só. Talvez apenas estar só no Natal. A festa comemora o nascimento de Jesus, mas o solitário vive como se fosse a Páscoa, como se estivesse crucificado pela solidão. Nem os dois ladrões estão ao seu lado, dividindo sofrimento. Não é por acaso que esta data pode ser uma das mais perigosas do ano para quem está propenso a cometer o maior dos desatinos. A solidão, quando voluntária e temporária, não é algo ruim. Pode ser oportunidade para autoconhecimento, para revisão de posturas e rumos na vida. Mas o vazio que vem quando se dá o afastamento social involuntário e muitas vezes permanente, esse deixa marcas profundas. Fere a alma e o corpo, desumaniza.

Ninguém nasce só. No mínimo a mãe está lá, na mais profunda interação que pode existir. Pensando bem, o nascimento tem esse estar junto, mas o nascer não. O nascer é solitário. O morrer também pode ter esse estar junto, se alguém está por perto, na hora da despedida. Mas a morte é solitária. O entrar e o sair da vida física são momentos nos quais só conta o protagonista. Ninguém leva Oscar de coadjuvante nessas horas. No máximo a mãe, como já citei antes, pode ser lembrada por sua participação especial na cena de entrada. Equipe médica, essa é a retaguarda necessária, apenas isso, nada mais do que isso.

Mas é sobre o Natal que desejo falar. Sobre essa oportunidade que temos de dividir presenças, algo muito mais importante do que trocarmos presentes. As luzes, a música, as cores e a comida preparada com carinho… Isso tudo cria clima, mas a preponderância precisa ser dos sentimentos, o que independe dessas belas manifestações materiais. Temos que abraçar as pessoas, mesmo que simbolicamente, pelos cuidados necessários devido à pandemia. Temos que dizer “eu estou aqui”, “nós estamos aqui”, “estamos todos juntos”, manifestar sincero interesse no convívio. Não pode ser pessoalmente? Que seja por telefone, por mensagem de texto, acenando da janela ou da sacada, desenhando um cartaz, colocando bilhete por baixo da porta. O que não pode é um momento de congraçamento por excelência, se tornar de solidão ampliada. O que não se pode fazer é esperar pelo toque de um menino hospitalizado em nosso braço, para então reagir.

20.12.2020

No bônus musical de hoje, algo inédito aqui no blog, mas muito oportuno: a publicidade da ação Natal Sem Fome. Porque ainda dá tempo de se fazer algo por quem tanto necessita. Para doar, acesse o site através do link https://www.natalsemfome.org.br/. Ainda sobre o anúncio, importante lembrar que todos os artistas envolvidos no projeto atuaram sem cachê, em função da causa ser muito nobre.

14 Comentários

  1. Meu amigo Solon, leio todos os teus textos e gosto muito, mas o de hoje me apertou o peito e me fez pensar em muitas coisas, algumas tristes, outras alegres. Geralmente, só pensamos ou analisamos a solidão, quando estamos envolvidos com ela ou temos alguém próximo que convive com este sentimento. Sábias palavras meu irmão, nenhum bem material faz o papel de uma boa companhia. O Natal está chegando novamente e neste ano de uma maneira diferente para todo o mundo. Confesso que o melhor presente que receberei será estar próximo de gente que eu gosto/amo, se não fisicamente com todos, de muitas outras maneira como você citou neste texto. “A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas, prima-irmã do tempo. E faz nossos relógios caminharem lentos, Causando um descompasso no meu coração”. Que Deus permita que a solidão esteja cada vez mais distante da vida de todos! Um texto para refletir muito, parabéns amigo! Feliz Natal a você e sua família! Abraços.

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    1. Bom saber que o texto pode ser instrumento que conduza à reflexão das pessoas. E gostei da tua citação de Alceu Valença e sua excelente música Solidão. Poderia ter sido meu bônus musical. Abraço, amigo Kruger!

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  2. Eu tenho “medo” do Natal. Não deveria ser assim, mas parece q por ser Natal a possibilidade de acontecer coisas ruins parece q aumenta…. a dor da solidão, acidentes, suicídio, embriaguez, violência doméstica brigas em família. Infelizmente.

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