Provavelmente já tenha acontecido com você algo semelhante ao que muitas pessoas relatam. Você comenta em casa, no trabalho ou qualquer outro local, sobre o seu interesse em algum assunto ou objeto de desejo. Basta isso acontecer e, pouco tempo depois, o seu celular começa a ser invadido por ofertas daquilo com o que você sonha, ou pelo menos com textos, vídeos e postagens diversas sobre os temas comentados. Assim, do nada, como se o universo resolvesse apresentar para você todas as coincidências possíveis. Ou, no mínimo, como se os seus pensamentos estivessem sendo ouvidos por alguma entidade, um ser invisível que se divertiria brincando contigo.

Isso é real, segundo foi recentemente apresentado por Joseph Cox, um jornalista inglês que se debruçou sobre esses fatos. A primeira entre as reportagens que ele produziu a esse respeito saiu em dezembro do ano passado. Nela ele relata o oferecimento de um serviço por uma empresa chamada Cox Media Group(*), cujo nome seria Active Listening, que em uma tradução livre significaria algo como “escuta ativa”. Na explicação, relataram tratar-se do uso de microfones de aparelhos smart para que campanhas publicitárias fossem direcionadas. Estes aparelhos são os nossos celulares, assim como muitos de TV, notebooks e tablets.

Ora, microfones se tratam de instrumentos transdutores que apenas captam som. Para que o som captado seja transmitido para algum lugar, isso requer um comando, uma determinação. Ou seja, na descrição do produto a empresa já estava confessando que se apropriava de modo indevido de informações de fontes primárias – que somos nós –, sem conhecimento e, portanto, sem a permissão delas. A consequência da reportagem foi a retirada imediata e silenciosa do site que anunciava o serviço, por parte da CMG. Porém, convém lembrar que o Active Listening provavelmente estivesse e ainda esteja também sendo ofertado por outras tantas companhias, além desta, sem que se saiba.

Evidente que da Internet nada é definitivamente apagado. Existem várias formas dos conteúdos serem recuperados. Basta procurar, por exemplo, através do Wayback Machine e se encontra o anúncio removido, o que nos permite comprovar a afirmação do jornalista. No seu texto consta, no terceiro parágrafo, que “esse é um mundo onde nenhum murmúrio pré compra passa despercebido e os sussurros dos consumidores se tornam uma ferramenta para você mirar, redirecionar e conquistar seu mercado local. Não é uma fantasia distante: é uma tecnologia que permite que você atinja uma eficiência de publicidade incomparável hoje, para que você possa ostentar um lucro maior amanhã”.

A empresa chega a dizer que não importa o que as pessoas estejam dizendo e que agora “você pode saber e agir”. E dá exemplos de assuntos corriqueiros, domésticos, interpessoais, que podem indicar um modo de ser oferecido de imediato produto ou solução. Agora, a cereja do bolo, a prova definitiva de que estamos nas mãos de quem domina a internet, está no final daquele site que foi removido. Numa sessão que simula dúvidas dos clientes, a primeira pergunta é se isso seria ou não legal. E a resposta é um primor: “Sim, é legal. Não há ilegalidade em que microfones e outros dispositivos ouçam você. Quando um novo download ou uma atualização de aplicativo solicita aos consumidores um acordo de termo de uso de várias páginas, em algum lugar e em letras miúdas está incluída a escuta ativa”.

Ou seja, uma entre as provavelmente muitas empresas que já fazem isso confessa o crime. Ela não revela como a tecnologia funciona, mas afirma que está na vanguarda em termos de processamento de dados de voz, podendo identificar potenciais compradores com base em conversas casuais mantidas em tempo real. Isso assusta ainda mais na medida em que ela provavelmente esteja sendo aplicada também não para a venda de produtos e serviços, mas para o direcionamento de propaganda com objetivos ideológicos. Ou seja, ao invés de nos vender alguma coisa se prestaria para comprar nossas consciências e moldar nossos pontos de vista. Isso porque daria um jeito de fazer chegar até nós toda e qualquer informação necessária, seja ela verdadeira ou não, de tal modo que poderia confirmar ou desmentir aquilo que nós expressamos voluntariamente. Isso torna as pessoas marionetes inocentes a serviço de interesses de terceiros. O que fica ainda muito fácil, uma vez que é tudo associado ao uso da inteligência artificial.

Agora em agosto Joseph Cox publicou uma nova reportagem. Nela mostra que depois do site ter sido retirado do ar, passaram a usar uma série de apresentações, encaminhadas para listas privadas de potenciais clientes. O assustador é que no primeiro deles está a informação de que Google, Amazon e Facebook estariam entre organizações que já teriam aderido ao recurso disponibilizado. Em termos de relevância, o MCG seria agora o terceiro parceiro da Google, o primeiro da Amazon e estaria entre os quatro primeiros do Facebook (Meta). Isso é algo sem precedentes na história. Se trata de um problema real, muito grave mesmo, e que requer combate imediato. Não acredito que a atenção devida esteja sendo dada pelas autoridades. Estão em jogo liberdades individuais e, quando para outros tantos maus usos a tecnologia termina sendo utilizada, até mesmo a soberania nacional. Afinal, convivemos cotidianamente com isso sem que se saiba quem utiliza e para que os dados que furtam de nós.

16.09.2024

(*) O Media Corporation Group (MCG) é um conglomerado de mídia com sede nos Estados Unidos, de propriedade da Apollo Global Management em conjunto com a Cox Enterprises.

Você gosta de política, comportamento, música, esporte, cultura, literatura, cinema e outros temas importantes do momento? Se identifica com os meus textos? Se você acha que há conteúdo inspirador naquilo que escrevo, considere apoiar o que eu faço. Contribua por meio do PIX virtualidades.blog@gmail.com ou fazendo uso do formulário abaixo:

Uma vez
Mensal
Anualmente

FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES

Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.

Faça uma doação mensal

Faça uma doação anual

Escolha um valor

R$10,00
R$20,00
R$30,00
R$15,00
R$20,00
R$25,00
R$150,00
R$200,00
R$250,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente

O bônus de hoje é La infidelidad de la era informática, música do uruguaio Jorge Drexler. Ela é uma das faixas do seu álbum 12 segundos de oscuridad.


Descubra mais sobre VIRTUALIDADES

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário