ÁGUAS DE MARÇO

Março de 1972. Chove torrencialmente sobre a pequena localidade de Poço Fundo, distante cerca de 40 minutos de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Nela, um dos tantos sítios existentes passava por reformas, estando a estrada de acesso naquele período bastante prejudicada. Mas, isso não impedia que ele servisse de refúgio para Tom Jobim, que gostava inclusive de compor naquele retiro. Era o que fazia, nesta ocasião específica. Segundo ele próprio relatou no folheto que acompanhava o disco onde primeiro teve aquela música gravada, sua inspiração foi o poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac. Mas, é difícil de acreditar que a questão climática não tenha ainda se somado ao nascimento de Águas de Março. Afinal, se torna fácil perceber que tudo era pau, pedra e o caminho era mesmo o fim. Nem que fosse da picada.

Sua esposa era Thereza Hermanny, que confirmou que esta verdadeira obra-prima surgiu depois de um dia muito cansativo. Ela foi testemunha ocular da história. Tom trabalhava na composição de Matita Perê, que viria a sair depois, em parceria com Paulo César Pinheiro – nesta há versos um tanto parecidos, em temática: /Tudo terminava/ No caminho velho onde a lama trava. E Bilac, no poema citado, fala de um momento /Quando a terra, em sede requeimada, /Bebera longamente as águas da estação. E ele, mais adiante, faz outras referências, como a que lembra virem /…águas crespas, galgando abismos e barrancos.

Inegável que o talento todo de Bilac neste caso exalta a história de quem foi um dos bandeirantes mais cruéis, responsável pela matança de índios e dono de vasto plantel – era esse mesmo o termo usado, como se eles fossem animais – de escravos. De família abastada e ele mesmo um latifundiário, Fernão Dias Paes Leme ocupa lugar de importância no que se refere a ter desbravado parte de nosso território. E um dos postos mais vergonhosos da nossa história, no que se refere a crimes contra os povos originários e a dignidade humana. Quanto à música de Tom, essa tem uma suavidade e uma profunda ligação com a terra. Nela a água é vida cotidiana, preenchendo acontecimentos tão banais que se tornam inigualáveis em significado. É lírio nascendo do lodo (*).

Hoje estamos outra vez abrindo um mês de março. Simbolicamente, as nossas “pétalas de esperança” podem outra vez serem expostas. Como acontece em toda abertura, em todo recomeço. Mesmo que agora se tenha de tal forma trabalhado para destruir a natureza que as águas de março não marquem mais a proximidade do final de verão algum. Estão elas descontroladas, trazendo destruição pelo esforço do meio ambiente em reencontrar o equilíbrio do qual o humano o tem afastado.

Tom é a própria imagem do comedimento como postura. É tão complexo o que ele produz que consegue nos enganar, parecendo simples. Ouvir com atenção Águas de Março é mergulhar nesse mundo. A música traz sonoridade acompanhada de cores, de sensações táteis, de uma sutil percepção de odores. Ela é múltipla e nos invade por diversos sentidos. Nos descobrimos lá naquele sítio onde nunca estivemos. Ganhamos fragmentos de convívio com a vida interiorana, sem que nos afastemos um metro sequer dos grandes centros onde hoje estamos confinados. Enfim, uma promessa para nossos corações, que nos alcança também e profundamente os espíritos.

1º.03.2024

(*) O lírio d’água tem suas raízes no lodo existente em lagos e lagoas. É a flor de lótus, que se fecha durante a noite, mergulhando nas águas. Só que essa reclusão voluntária termina pouco antes do amanhecer, quando ela ressurge e se abre para a vida, outra vez na superfície.

Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim

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O bônus de hoje vem com duas gravações da mesma música que esse texto busca homenagear, juntamente com o seu autor. Na primeira temos Águas de Março nas vozes de Elis Regina e Tom Jobim, sendo ainda do ano de 1974. Na segunda, Alliye de Oliveira nos brinda com primorosa interpretação feita em francês.

ABRAÇOS LITERAIS

Para aquela parcela da população brasileira que segue acreditando que nada melhor poderia nos acontecer do que nos tornarmos uma cópia dos EUA, no comportamento social e na economia, a pandemia pode ter contribuído para a assimilação parcial de um detalhe que identifica muito aquele povo. Me refiro à pouca afinidade com manifestações públicas de afeto. Nós, que somos totalmente latinos de “sangue quente”, sempre fizemos isso com muito mais desenvoltura. Os nossos “irmãos do norte”, no entanto, não raras vezes aparentam verdadeira repulsa diante da possibilidade de qualquer contato físico. Um gesto de carinho de uma outra pessoa ganha conotação de desrespeito ao seu corpo, de invasão e de assédio. Por isso, a necessidade de cuidados e de distanciamento social trazida pela pandemia nos aproximou dessa verdadeira ojeriza, reduzindo nossos toques e abraços literais. O que faz imensa falta.

Um abraço é uma expressão com múltiplos sentidos e significados, que em geral duas pessoas – pode envolver um número maior, de modo simultâneo – praticam com o envolvimento do corpo uma da outra pelos seus braços e mãos. Uma troca afetiva com certa dose de intimidade, sem que precise ser extrema. Mas podendo também ser, evidente. É assim porque pode ir de simples cumprimento a uma significativa manifestação de sentimentos. Todas as culturas do mundo parecem ter essa prática, com maior ou menor intensidade e frequência. Com um abraço as pessoas revelam carinho, compaixão, saudade, amor, proteção e muito mais. Até mesmo o medo pode nos levar a esse estreitamento mútuo. O abraço é um poderoso recurso não verbal que comunica; uma forma sem igual de reconhecimento.

O poeta gaúcho Mário Quintana escreveu que “abraçar é dizer com as mãos o que a boca não consegue. Porque nem sempre existe palavra para tudo”. Um abraço é algo tão incrível que os mais apertados muitas vezes nos dão maior alívio. E nessa arte os brasileiros são mestres. Por aqui, muito antes da Covid-19 estar presente já havia, em paralelo com os concretos, abraços virtuais e falados. Aqueles que nossa conhecida informalidade permite escrever ao final de mensagens de e-mail ou de WhatsApp, mesmo sem muita intimidade com a pessoa destinatária. Ou os dados apenas com o falar, para conhecidos com os quais cruzamos na rua: na despedida a pessoa diz “um abraço” e recebe resposta idêntica, mesmo que nem sequer cheguem muito próximas uma da outra.

Mas o abraço literal, esse do qual reafirmo todos sentimos mais falta, é quase uma terapia. Ele faz um belo par com o “bom dia”; com encontros e reencontros; substitui remédio contra a depressão. Se vem com um beijo, se potencializa. Sendo sincero, ultrapassa o corpo e acalma a alma. O abraço é ponto de partida para intimidades, mas sua conotação maior está longe de ser sexual. Até porque abraço se dá em público – ao menos aqui no Brasil – e ninguém transa nas ruas, em corredores de shoppings, na porta de teatros. Mesmo em ocasiões nas quais a vontade pode até estar presente. Sobre esse, dado no homem ou na mulher amada, Caio Fernando Abreu confessou: “Eu sinto ciúme quando alguém te abraça, porque por um segundo essa pessoa está segurando meu mundo inteiro.

Na verdade, abraço bom nem tem motivo. Vem sem aviso e nos enlaça. Abraço bom dá vontade de ficar morando nele. Abraço bom tem um silêncio eloquente. É quentinho; é insubstituível. Por tudo isso a vacina contra o coronavírus pode e deve ser vista como um remédio a favor do abraço. Se a efetividade dela no combate à doença não for o suficiente para lhe convencer a oferecer o braço para o aplicador, pense nas pessoas que ama e para as quais poderá voltar a alcançar não apenas um, mas ambos os braços, com muito menos risco para você e para elas. Uma chance ímpar de voltar a parecer outra vez um brasileiro nato e não um norte-americano constrangido – sem que se faça generalizações, evidente. Dito isso, encerro o texto de hoje com um forte abraço a quem leu com atenção até aqui.

06.08.2021

Abraços têm valor terapêutico, afetivo e emocional

No bônus de hoje, a banda mineira Jota Quest com a música Dentro de Um Abraço. Ela é uma das faixas do álbum Funky Funky Boom Boom.